16 novembro 2007

Os Mortos, Os Vivos

Vi pedras escritas com sangue
nas letras da memória
sangue misturado à argamassa do mundo
sangue encharcando
o trigo sobre a terra
faço poemas sem sangue
não há sangue no sol
só os mortos têm sangue
a escorrer pelas mãos
os vivos bebem leite
das galáxias
meu lado direito é avesso
meu lado esquerdo, revolução
o poema evocará os mortos
de todas as catacumbas
lutaremos em armas
contra o peso de Samsara
companheiros
as baionetas mais fecundas
nasceram das vozes dos pássaros
que repetiam mantras
contra a opressão do cosmo
faço palavra minha espada a língua
faço fuzil trincheira meu coração
piso em marcha afiada
falsas flores e o plástico
dos corações
cuspo em vermelho sobre catedrais, bancos, hospitais
enveneno as águas dos jornais
aos vampiros degolo com punhais
nas terras perdidas da América
Ó América inteira
desenterro teus ossos de poemas
cal a fecundar sonhos
ressuscito tuas mulheres de milho
as cinturas cobertas de sinais indecifráveis
são nossos olhos quedas d'água nas fronteiras
Aconcáguas, Cenotes
é o sexo da América
um transe no tempo
a eternidade revirando seus baús
guarás, lhamas passeiam em minhas veias
há muito tempo morri para o presente
sonho do passado a cauda que o futuro morderá
sonho a matéria de uma terra nova
sempre velha
América
terra de sonho, amor.

02 novembro 2007

Miséria e Revolução

O Cenário: estou saindo da livraria Loyola, no centro da cidade; ao lado, há um restaurante, um self service típico desses tempos de globalização; o restaurante está fechado, em frente a entrada, estão os despojos, o lixo, aquilo que o restaurante rejeita - restos de comida, tanta cozida quanto crua -, refugo alimentar dos trabalhadores que passaram por ali, sobras de carne não utilizada por tratar-se de pedaços não nobres - pele de frango, pescoço -, enfim, tudo aquilo que não foi aproveitado e que agora é vomitado pelas portas do restaurante para as ruas da cidade.
A Cena: frente aos sacos de lixo, três homens, de roupas sujas e rasgadas, debruçam-se em busca de algo: fixo bem o meu olhar, com certa discreção, para ver o que eles procuram, o que eles buscam; o que está à minha frente, tira do saco de lixo restos de carne crua, pela cor parecem ser restos de frango - pele e outras partes não aproveitadas -, ele recolhe com avidez os pedaços e põe em outro saco. Os outros repetem os mesmos gestos, com menor ou maior avidez, mas com um desespero contido, uma força que os mobiliza a atacarem os sacos.

Sei qual é essa força, sei qual é o motor do desespero - essa força é a fome, esse motor são os estômagos vazios, loucos para ingerirem qualquer coisa que alivie a carga vazia da fome.
Ainda que esse quadro se repita todos os dias pelos quadrantes da cidade, ainda que a cena tenha virado rotina e passe desapercebida aos olhos dos milhares que cruzam a cidade, mesmo assim não consigo deixar de me espantar e me indignar frente a essa cena que tem um sabor de inferno, que parece um trecho de um pesadelo narrado por uma pena goyesca, ou então um poema sombrio escrito por alguém que nunca viu o sol.
A miséria, assunto debatido nas universidades, discutido nos ministérios, planejado nas corporações, a miséria se tornou corriqueira, presente no cotidiano, e nós nos tornamos totalmente indiferentes a esses seres que se debatem pela pura sobrevivência.
Nós, bem ou mal, vivemos; eles sobrevivem, ou melhor, se esforçam para sobreviver, para, no mínimo, manterem vivos os seus corpos, essas máquinas fabulosas de vida. Não falo que eles têm esperanças, porque a esperança é um luxo daqueles que pelo menos têm com que se alimentarem. Os outros, os outros somente seguem.
É característico dessa civilização de início de século a frieza frente a dor alheia, a idéia mesma de que a miséria e a fome fazem parte da civilização - pelo menos esse é o discurso dos teóricos do neoliberalismo, das cabeças pensantes do capitalismo, que acham que a desigualdade social faz parte da dinâmica social e que assim terá de ser: aqueles que são abençoados pela riqueza - poucos, como os dedos de uma mão -, e os outros, aqueles que se debatem para no mínimo existirem - muitos, como grãos de pólen espalhados aos ventos.
Essa idéia é de uma falsidade e de um cinismo que não conseguimos medir. Porque a verdade é que a história nos prova que em outros momentos e outras civilizações, a fome não foi um dado permanente nem a desigualdade dava suporte a que milhares ficassem expostos a tão alto grau de miséria. O capitalismo sempre quer nos provar sua necessidade histórica, sempre e sempre nos mostrar que não há outra maneira de socialização, a não ser esse abismo, essa proximidade entre riqueza e miséria, esses laços entre a abundância e a escassez.
De minha parte, não acredito que a miséria seja um mal necessário, a pergunta que me faço é como conseguiremos acabar com ela.
Porque não vejo nenhuma classe a atuar, no momento, como sujeito histórico, não vejo nenhuma classe tentando transformar a história.
Podem dizer que as utopias são quimeras históricas; acredito que as utopias são o fermento do sonho que nos impulsiona a lutar por um mundo que seja humano, por uma história que aconteça - Marx dizia que ainda estávamos na pré-história, Nietzsche dizia que a história ainda não havia começado -, porque a história é o tempo ordenado pelo homem, a história é o acontecimento dirigido, então ainda não entramos no terreno da história.
Acredito que a miséria tenha um potencial revolucionário; Benjamin achava que a revolução deveria redimir não só aqueles oprimidos do presente, mas redimir também os mortos do passado, aqueles que foram submetidos à miséria antes de nós, aqueles que sucumbiram à opressão, lutando ou não contra ela.
Porque sucumbir não é uma questão de fraqueza, a queda não é uma questão moral, a queda às vezes é o último recurso da existência: caímos para continuarmos existindo, insistir na luta seria apostar na morte, seja ela involuntária ou não.
Isso me remete a outra cena:

O Cenário: a praça Clóvis Beviláqua, próximo à Av. Rangel Pestana.
A Cena: uma mulher, vestida com roupas maltrapilhas e sujas, sentada num banco, discute e agride...a si mesma. Ela se recrimina, ela se xinga; seus olhos não olham para fora, ela olha para ela mesma, ela não vê o mundo ao redor, ela nem vê a si mesma, ela só vê seus sonhos desfeitos, sua vida em ruínas, suas frustrações, sua fome, ela só vê a roupa que lhe falta, o ar poluído que ela respira, as violências que sofreu; ela xinga a si mesma, de nomes que para mim são sempre cristãos - toda obscenidade é cristã, já disse em outro lugar -, ela desenha no ar arabescos sombrios marcados pela loucura, marcados pela queda, marcados pelo medo.
Talvez seja uma deusa, porque sua voz ecoa dentro de mim, ainda ouço agora quando em frente ao computador digito esse texto meio barroco sobre a miséria; sua voz vem de um hades humano, dessa terra em que vivemos onde sucumbir é um verbo sempre presente e onde a miséria se tornou somente um detalhe da paisagem.

Então, como não falar em revolução ? como não insistir no potencial humano de transformar a realidade, como não insistir na ação humana que faz com que consigamos determinar o rumo dos acontecimentos ? Porque não é possível achar que esse estado das coisas seja o normal; não é possível achar que a miséria e a fome façam parte da existência humana como um mal necessário, porque isso deforma a nossa humanidade.
Mas qual revolução é possível ? Qual revolução se pode fazer ? O discurso da globalização tem um potencial extremamente perigoso, uma face asséptica e cínica, que tenta uniformizar as sociedades em torno das desigualdades e de um discurso tecnológico que tem um tremendo potencial alienante.
Alienação do sujeito não só enquanto sujeito social, alienação do sujeito também quanto à sua própria interioridade, esvaziamento do indivíduo, que não consegue mais se reconhecer nem como alguém capaz de sonhar, nem que sejam os sonhos mais triviais de uma vida cômoda e burguesa - as pessoas são levadas pelo movimento incessante das engrenagens sociais, pela roda mais do que viva, trituradora de homens, destruidora de humanos, aniquiladora da humanidade.
Mas, enquanto a miséria espalha seus tentáculos e a opressão social aumenta cada vez mais, ainda há os que insistem que a vida só será plenamente humana quando todos viverem em plenitude, sim a plenitude é um direito humano, a plenitude é a face que torna nossas incertezas, nossa incompletude mais bela, nosso rosto mais suave, cheio de flores que alguns chamam de esperança.
Acredito na revolução, ouço as vozes da mulheres loucas e sinto a fome dos mendigos, como ouço as vozes dos pássaros no amanhecer e sinto a fome do sol de alguma luz além da sua; ouço também os gritos dos torturados e o sangue dos que morreram em busca da luz, como vejo o amor no rosto das mulheres, e ouço o amor no coração da menina de olhos bicolores.
A via humana é grandiosa demais, mesmo que pequena e frágil. Redimi-la da fome e da dor, é nossa tarefa mais urgente, é nossa necessidade de humanizar a história.
Então, hasta la revolucion, companheiros.