26 dezembro 2007

Adeus Ano Velho, Feliz Revolução Nova



Que o próximo ano
traga esperanças revolucionárias e que sejamos capazes de pensarmos e construirmos um mundo melhor. Que a poesia, a filosofia, a arte e a revolução - do espírito e da matéria - andem de mãos dadas na tarefa, dura, mas necessária, de erguermos um novo horizonte.Até o próximo ano.








13 dezembro 2007

A Nova Luz – Uma Resposta Histórica a Um Processo em Curso

É papel do historiador não somente se debruçar sobre o passado, mas também procurar compreender o presente a partir do passado, a partir dos exemplos históricos.
Vista do ângulo da história, a intervenção urbana no bairro da luz, em São Paulo, que a prefeitura de São Paulo denominou de Nova Luz , chega a ter um nome até irônico, porque ela se configura, do ponto de vista histórico, na repetição de velhos erros urbanísticos e na perpetuação de práticas sociais que, se aparentemente limpam as áreas urbanas – limpeza essa já questionável – num curto intervalo de tempo, a longo prazo representam um aprofundamento no erro e não a solução – estamos falando da gentrification, ou gentrificação. Mas não nos antecipemos. Estamos a colocar o carro na frente dos bois.
Walter Benjamin, em sua VI tese Sobre O Conceito de História, diz : articular o passado historicamente não significa conhecê-lo “tal como ele propriamente foi”. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo. Nós estamos articulando o passado enquanto ele ainda é presente, porque esse é um instante de perigo, perigo esse que terá suas conseqüências para o futuro, principalmente quando se está a se repetir erros que já foram cometidos – intervenções urbanas que levaram a novas levas de especulação imobiliária, “higienização” do centro com deslocamento maciço de pessoas – é como tentar jogar para baixo do tapete aquilo que salta à vista e não se percebe que a história não acoberta nada, tudo vem à tona com o tempo, alguém testemunha o momento de perigo.
Porque antes mesmo de avaliar o projeto, faz-se necessário avaliar a degradação do chamado centro velho, em particular a degradação do bairro da Luz. Esse processo de degradação, de abandono, por parte do poder público, do chamado centro velho, não foi um fenômeno isolado da cidade de São Paulo, ele ocorreu de modo variado e comum em quase todas as grandes metrópoles do século XX, e há elementos muito comuns, por exemplo, com a degradação do Pelourinho, em Salvador. Segundo Paulo Ormindo
Um centro histórico desse tipo, normalmente, sofre alguns processos, como excessiva especialização, em conseqüência do aumento da demanda dos serviços, que é, por sua vez, função de seu crescimento. Por exemplo, a sua transformação num setor exclusivo de prestação de serviços – comércio,bancos, etc. - o que implica uma pressão imobiliária muito grande sobre a área. É um processo que ocorre hoje e foi responsável pela destruição de uma série de centros históricos no Brasil, como é o caso do Rio de Janeiro, de São Paulo, e de outras capitais brasileiras, e que vem ocorrendo a nível latino- americano e em outros países.
(In Arantes, 1984)
Ainda que a referência não seja do momento, pouco mudou o quadro descrito. A chamada descentralização, que mudou o foco da cidade para outros bairros – Jardins, Paulista, Morumbi - , reflete exatamente o que Ormindo descrevia pelo ano de 1984. Paulo Ormindo falava, naquele momento, do bairro do Pelourinho, em Salvador, que passou por processo semelhante na década de 80, quando começou a chamada revitalização do Pelourinho. O problema maior apontado por Ormindo foi justamente a descentralização, com a conseqüente degradação e abandono do centro velho de Salvador, sem que o poder público tomasse as medidas necessárias para deter o processo enquanto esse ainda estava em curso. O que agrava o discurso do autor, é que não foram tomadas providências, aqui em São Paulo, para evitar esse processo, e as medidas que agora são tomadas, em larga medida, reproduzem o modelo criticado.
Localizadas as razões para a degradação da região da Luz – a transferência de empresas para outros bairros por conta do abandono do poder público quanto aos serviços básicos, mais a pressão imobiliária -, fica mais fácil contextualizar o projeto hoje em curso.
A primeira característica marcante do projeto Nova Luz, foi a limpeza que foi feita; não uma limpeza das ruas – cotidiana -, mas sim a limpeza social, o afastamento de elementos considerados perigosos ou simplesmente excluídos. No próprio site da prefeitura de São Paulo há informações sobre as ações tomadas, só que em nenhum momento elas são contextualizadas. Organizações dos direitos humanos elaboraram um documento em que as violências são relatadas, o Dossiê Sobre as Violações de Direitos Humanos no Centro de São Paulo, onde é mostrado, através de reportagens, relatórios e material iconográfico, a ação extremamente violenta da polícia militar, braço armado do estado, para expulsar esses excluídos, a maior parte moradores de rua ou pessoas que ocuparam os prédios abandonados por não terem onde morar.
Essa violência injustificada, que de diversas maneiras se assemelha às ações de Hitler ao realizar as mudanças na Berlim dos anos 30, demonstra claramente a natureza excludente do projeto: não se procurou incluir a população local, os moradores de rua e os moradores dos prédios ocupados, na concepção do projeto, a transformação desejada virá à custa dessa população, o enobrecimento da área virá através de uma exclusão gradativa e persistente, uma gentrification em curso que implicará nos desdobramentos já previstos e que coincidem com os alertas dados por Paulo Ormindo nos idos de 1980, a exclusão da população pobre e a especulação imobiliária – vale lembrar, e veremos isso à frente, que o projeto Nova Luz está procurando atrair empresas para a região através de incentivos fiscais.
A ação do poder público tem sido dura e inflexível quanto à população excluída, e o que era público – o próprio espaço – vai sendo transferido do poder público para as empresas privadas – em nenhum momento o poder público cogitou dar incentivos à população pobre para que ela se estabelecesse ou ficasse na região, em nenhum momento se discutiu maneiras de viabilizar a estadia da população de baixa renda, porque não há o interesse em tal. Assim se revela a natureza excludente do projeto e, porque não dizer, visto outros antecedentes semelhantes, tal como descrito por Walter Benjamin em Rua De Mão Única, fascista em sua concepção e em sua execução. O projeto claramente busca atender a uma parcela da população: empresários que vão investir na região, uma classe média abastada que vai procurar diversão sofisticada e outra que vai procurar a região para morar, depois das transformações que o bairro vai sofrer.
O outro aspecto que merece ser meditado com muita atenção, mas que vai se revelar complementar à exclusão já iniciada, são as leis de incentivo fiscal que foram aprovadas e que apontam os rumos da ocupação que se deseja. O texto do projeto diz :
Lei de Incentivos Fiscais:
enviada em 16 de setembro à Câmara pelo prefeito José Serra, a lei estimula a instalação de empresas de tecnologia e outros serviços.(Grifo nosso) A Lei foi aprovada em 30 de novembro de 2005 e regulamentada em 14 de fevereiro deste ano; A área foi declarada de utilidade pública (6/09/2005), possibilitando sua revitalização urbanística; (Site http://centrosp.prefeitura.sp.gov.br/projetos/novaluz)

Fica claro a fica de concentração de serviços, a excessiva especialização já apontada por Ormindo quanto a outros processos, especialização esta que gerará novas demandas e novas transferências de economia de um bairro para outro, bem como a outra política, a da exclusão da população pobre, vai significar a transferência dessa população de um bairro para outro.
O chamado perímetro de incentivo fiscal tem o total de 225 km2., praticamente o dobro da chamada área de utilidade pública, que tem a área de 105km2. A área total a ser transformada dá o total de 225 hectares ou 2,25 milhões de metros quadrados.
A gentrification em curso no projeto explica, de certo modo, as intervenções anteriores: a criação da Sala São Paulo, do espaço Pinacoteca e a revitalização do Jardim da Luz, como maneiras de atrair uma população de alto poder econômico e poder de decisão, para dar suporte político ao projeto.
Não vamos discutir aqui a validade das ações policiais que foram direcionadas ao combate ao crime, ao tráfico de drogas e à marginalidade disseminada pelos recantos abandonados do bairro. O que queremos discutir e mostrar é que mesmo esse abandono, essa degradação, foi o resultado de um abandono anterior por parte do poder público, que deixou a área desprovida de manutenção básica, que não fez e nem procurou investimentos para a área, seguindo o ritmo das flutuações imobiliárias.
O principal estigma atribuído à parte do bairro, o de ser a Cracolândia, já estava posto não de agora, mas de um longo tempo, e nunca houve uma ação concentrada para resolver o problema do tráfico de drogas na região, menos ainda no tocante aos problemas da população de rua e aos menores abandonados, realidade muito mais antiga para qual o estado nunca tomou nenhuma medida eficaz. Porque os problemas relativos à marginalidade são decorrências diretas da falta de investimentos sociais, do abandono de qualquer política, por parte do estado de São Paulo, de investimentos em educação, saúde ou de amparo às populações marginalizadas, expulsas das classes, lumpenizadas pela mão cruel da dinâmica social capitalista. Márcio Pochman, no livro São Paulo: Realidade e Perspectivas – Efeitos do Liberalismo Tucano no Estado, diz que:
Nessa situação, ampliam-se barbaramente aqueles que são considerados pobres. Não sem motivos, São Paulo torna-se o maior estado de pobres do País, relativamente ao padrão de riqueza oferecida. ( Pochman, in Casaro, 2006)
Os ditames da política tucana claramente são: não se sanam os problemas sociais, mas simplesmente se expulsa a população produzida por esses problemas, limpa-se a área, para que a burguesia,a verdadeira dona do poder, o verdadeiro agente do estado, possa desfrutar da bela e tumultuada zona da Luz.
Sem dúvidas, o patrimônio material presente na região está sendo preservado: a estação da Luz, a Pinacoteca, o Jardim da Luz; mas essa preservação, qual a validade dela, se preservar implica então em excluir parte da população do usufruto do bem tombado ? Em que medida essa preservação não significa também a apropriação do público pelo privado e também uma confirmação de valores ideológicos formadores de uma identidade de classe e não uma identidade do povo ?
As cidades são os lugares privilegiados onde a vida humana se concentra e se concentrará ainda mais agora no século XXI; mas nós humanos precisaremos equacionar e resolver nossas diferenças sociais, se não quisermos transformar as cidades em canteiros férteis do caos. O espaço público que a cidade constitui terá de ser usado como tal, e não como uma arma a ser usada para beneficiar classes específicas que detenham em suas mãos o poder econômico e político. Nesse sentido, o projeto Nova Luz não é somente uma regressão do ponto de vista urbanístico; politicamente ele é claramente a explicitação da natureza de um projeto em curso – a política neoliberal vigente no país e no estado de São Paulo -, que aumenta cada vez mais o número de excluídos, de desabrigados, de marginalizados, e que essa mesma política acaba por expulsar as populações marginalizadas para um nada metafísico, para uma não existência concreta que se resume em se amparar na própria margem – marginalidade – para garantir a sobrevivência mínima. A Nova Luz é uma piada de mal gosto num momento histórico em que cada vez mais são questionados a política neoliberal e os modelos capitalistas, que levam o planeta à exaustão e às populações pobres à marginalidade.
Pelos menos nós, historiadores, num momento de perigo, temos de saber mostrar os equívocos e a hipocrisia de uma política que, em nome de um estado que se pronuncia independente, mostra sua face corrupta e corruptível, não hesitando em expulsar, violentar ou agredir a população excluída para beneficiar aqueles que Raymundo Faoro chamaria de os donos do poder.
Num momento de perigo, nós historiadores dizemos: não.


Bibliografia:
ARANTES, Antonio Augusto(org.). Produzindo O Passado, São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984
CASARO, Rita(org.). São Paulo: Realidade e Perspectivas – Efeitos do Liberalismo Tucano no Estado, São Paulo: Ed.Anita Garibaldi/ Instituto Maurício Grabois, 2006.
FARIA, Hamilton & NASCIMENTO, Maria Ercília . Desenvolvimento Cultural e Planos de Governo, São Paulo: Polis, 2000
HORTA, Maria de Lourdes Pinheiro, GRUNBERG, Evelina & MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia Básico de Educação Patrimonial, Rio de Janeiro: Museu Imperial/Iphan, 1999
LEITE, Rogério Proença de Souza. Espaço Público e Política dos Lugares – Uso do Patrimônio Cultural na Reinvenção do Recife Antigo, Campinas: Unicamp, 2001
LOWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de Incêndio – Uma Leitura das teses “Sobre O Conceito da História, São Paulo: Boitempo Editorial, 2005
SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preservação do Patrimônio Cultural em Cidades, Belo Horizonte: Autêntica, 2005
VIEIRA, Maria do Rosário da Cunha. A Pesquisa em História, São Paulo: Ática Editora, 2003 VIVO, Fórum Centro. Violações dos Direitos Humanos no Centro de São Paulo: Propostas e Reivindicações Para Políticas Públicas, São Paulo: Fórum Centro Vivo, 2007


16 novembro 2007

Os Mortos, Os Vivos

Vi pedras escritas com sangue
nas letras da memória
sangue misturado à argamassa do mundo
sangue encharcando
o trigo sobre a terra
faço poemas sem sangue
não há sangue no sol
só os mortos têm sangue
a escorrer pelas mãos
os vivos bebem leite
das galáxias
meu lado direito é avesso
meu lado esquerdo, revolução
o poema evocará os mortos
de todas as catacumbas
lutaremos em armas
contra o peso de Samsara
companheiros
as baionetas mais fecundas
nasceram das vozes dos pássaros
que repetiam mantras
contra a opressão do cosmo
faço palavra minha espada a língua
faço fuzil trincheira meu coração
piso em marcha afiada
falsas flores e o plástico
dos corações
cuspo em vermelho sobre catedrais, bancos, hospitais
enveneno as águas dos jornais
aos vampiros degolo com punhais
nas terras perdidas da América
Ó América inteira
desenterro teus ossos de poemas
cal a fecundar sonhos
ressuscito tuas mulheres de milho
as cinturas cobertas de sinais indecifráveis
são nossos olhos quedas d'água nas fronteiras
Aconcáguas, Cenotes
é o sexo da América
um transe no tempo
a eternidade revirando seus baús
guarás, lhamas passeiam em minhas veias
há muito tempo morri para o presente
sonho do passado a cauda que o futuro morderá
sonho a matéria de uma terra nova
sempre velha
América
terra de sonho, amor.

02 novembro 2007

Miséria e Revolução

O Cenário: estou saindo da livraria Loyola, no centro da cidade; ao lado, há um restaurante, um self service típico desses tempos de globalização; o restaurante está fechado, em frente a entrada, estão os despojos, o lixo, aquilo que o restaurante rejeita - restos de comida, tanta cozida quanto crua -, refugo alimentar dos trabalhadores que passaram por ali, sobras de carne não utilizada por tratar-se de pedaços não nobres - pele de frango, pescoço -, enfim, tudo aquilo que não foi aproveitado e que agora é vomitado pelas portas do restaurante para as ruas da cidade.
A Cena: frente aos sacos de lixo, três homens, de roupas sujas e rasgadas, debruçam-se em busca de algo: fixo bem o meu olhar, com certa discreção, para ver o que eles procuram, o que eles buscam; o que está à minha frente, tira do saco de lixo restos de carne crua, pela cor parecem ser restos de frango - pele e outras partes não aproveitadas -, ele recolhe com avidez os pedaços e põe em outro saco. Os outros repetem os mesmos gestos, com menor ou maior avidez, mas com um desespero contido, uma força que os mobiliza a atacarem os sacos.

Sei qual é essa força, sei qual é o motor do desespero - essa força é a fome, esse motor são os estômagos vazios, loucos para ingerirem qualquer coisa que alivie a carga vazia da fome.
Ainda que esse quadro se repita todos os dias pelos quadrantes da cidade, ainda que a cena tenha virado rotina e passe desapercebida aos olhos dos milhares que cruzam a cidade, mesmo assim não consigo deixar de me espantar e me indignar frente a essa cena que tem um sabor de inferno, que parece um trecho de um pesadelo narrado por uma pena goyesca, ou então um poema sombrio escrito por alguém que nunca viu o sol.
A miséria, assunto debatido nas universidades, discutido nos ministérios, planejado nas corporações, a miséria se tornou corriqueira, presente no cotidiano, e nós nos tornamos totalmente indiferentes a esses seres que se debatem pela pura sobrevivência.
Nós, bem ou mal, vivemos; eles sobrevivem, ou melhor, se esforçam para sobreviver, para, no mínimo, manterem vivos os seus corpos, essas máquinas fabulosas de vida. Não falo que eles têm esperanças, porque a esperança é um luxo daqueles que pelo menos têm com que se alimentarem. Os outros, os outros somente seguem.
É característico dessa civilização de início de século a frieza frente a dor alheia, a idéia mesma de que a miséria e a fome fazem parte da civilização - pelo menos esse é o discurso dos teóricos do neoliberalismo, das cabeças pensantes do capitalismo, que acham que a desigualdade social faz parte da dinâmica social e que assim terá de ser: aqueles que são abençoados pela riqueza - poucos, como os dedos de uma mão -, e os outros, aqueles que se debatem para no mínimo existirem - muitos, como grãos de pólen espalhados aos ventos.
Essa idéia é de uma falsidade e de um cinismo que não conseguimos medir. Porque a verdade é que a história nos prova que em outros momentos e outras civilizações, a fome não foi um dado permanente nem a desigualdade dava suporte a que milhares ficassem expostos a tão alto grau de miséria. O capitalismo sempre quer nos provar sua necessidade histórica, sempre e sempre nos mostrar que não há outra maneira de socialização, a não ser esse abismo, essa proximidade entre riqueza e miséria, esses laços entre a abundância e a escassez.
De minha parte, não acredito que a miséria seja um mal necessário, a pergunta que me faço é como conseguiremos acabar com ela.
Porque não vejo nenhuma classe a atuar, no momento, como sujeito histórico, não vejo nenhuma classe tentando transformar a história.
Podem dizer que as utopias são quimeras históricas; acredito que as utopias são o fermento do sonho que nos impulsiona a lutar por um mundo que seja humano, por uma história que aconteça - Marx dizia que ainda estávamos na pré-história, Nietzsche dizia que a história ainda não havia começado -, porque a história é o tempo ordenado pelo homem, a história é o acontecimento dirigido, então ainda não entramos no terreno da história.
Acredito que a miséria tenha um potencial revolucionário; Benjamin achava que a revolução deveria redimir não só aqueles oprimidos do presente, mas redimir também os mortos do passado, aqueles que foram submetidos à miséria antes de nós, aqueles que sucumbiram à opressão, lutando ou não contra ela.
Porque sucumbir não é uma questão de fraqueza, a queda não é uma questão moral, a queda às vezes é o último recurso da existência: caímos para continuarmos existindo, insistir na luta seria apostar na morte, seja ela involuntária ou não.
Isso me remete a outra cena:

O Cenário: a praça Clóvis Beviláqua, próximo à Av. Rangel Pestana.
A Cena: uma mulher, vestida com roupas maltrapilhas e sujas, sentada num banco, discute e agride...a si mesma. Ela se recrimina, ela se xinga; seus olhos não olham para fora, ela olha para ela mesma, ela não vê o mundo ao redor, ela nem vê a si mesma, ela só vê seus sonhos desfeitos, sua vida em ruínas, suas frustrações, sua fome, ela só vê a roupa que lhe falta, o ar poluído que ela respira, as violências que sofreu; ela xinga a si mesma, de nomes que para mim são sempre cristãos - toda obscenidade é cristã, já disse em outro lugar -, ela desenha no ar arabescos sombrios marcados pela loucura, marcados pela queda, marcados pelo medo.
Talvez seja uma deusa, porque sua voz ecoa dentro de mim, ainda ouço agora quando em frente ao computador digito esse texto meio barroco sobre a miséria; sua voz vem de um hades humano, dessa terra em que vivemos onde sucumbir é um verbo sempre presente e onde a miséria se tornou somente um detalhe da paisagem.

Então, como não falar em revolução ? como não insistir no potencial humano de transformar a realidade, como não insistir na ação humana que faz com que consigamos determinar o rumo dos acontecimentos ? Porque não é possível achar que esse estado das coisas seja o normal; não é possível achar que a miséria e a fome façam parte da existência humana como um mal necessário, porque isso deforma a nossa humanidade.
Mas qual revolução é possível ? Qual revolução se pode fazer ? O discurso da globalização tem um potencial extremamente perigoso, uma face asséptica e cínica, que tenta uniformizar as sociedades em torno das desigualdades e de um discurso tecnológico que tem um tremendo potencial alienante.
Alienação do sujeito não só enquanto sujeito social, alienação do sujeito também quanto à sua própria interioridade, esvaziamento do indivíduo, que não consegue mais se reconhecer nem como alguém capaz de sonhar, nem que sejam os sonhos mais triviais de uma vida cômoda e burguesa - as pessoas são levadas pelo movimento incessante das engrenagens sociais, pela roda mais do que viva, trituradora de homens, destruidora de humanos, aniquiladora da humanidade.
Mas, enquanto a miséria espalha seus tentáculos e a opressão social aumenta cada vez mais, ainda há os que insistem que a vida só será plenamente humana quando todos viverem em plenitude, sim a plenitude é um direito humano, a plenitude é a face que torna nossas incertezas, nossa incompletude mais bela, nosso rosto mais suave, cheio de flores que alguns chamam de esperança.
Acredito na revolução, ouço as vozes da mulheres loucas e sinto a fome dos mendigos, como ouço as vozes dos pássaros no amanhecer e sinto a fome do sol de alguma luz além da sua; ouço também os gritos dos torturados e o sangue dos que morreram em busca da luz, como vejo o amor no rosto das mulheres, e ouço o amor no coração da menina de olhos bicolores.
A via humana é grandiosa demais, mesmo que pequena e frágil. Redimi-la da fome e da dor, é nossa tarefa mais urgente, é nossa necessidade de humanizar a história.
Então, hasta la revolucion, companheiros.

14 outubro 2007

Asas Que Se Abrem - Poema

Asas Que Se Abrem

Minha voz é rouca, mancha submersa

espelho dos meus olhos

onde passam sombras, desesperos

dos mortos-vivos sobre a terra

loucos da fome, insânia da miséria

deuses vestidos de andrajos

loucos da dor, da indiferença

poetas de um texto a escrever

ah, valha mais a loucura que o fausto da usura

mais as palavras que machucam

as flores do dia

que os crepúsculos mortos dos edifícios

onde se compra a vida, se planeja a morte

milhares de almas acorrentadas pela fome

um dia gritarão no meio dos abismos

ventos marcharão contra as portas das cidades

cegos, loucos, também são deuses

o que tu vês, Tirésias das esquinas

além do que a morte

escancara em nossas retinas

o que tu ouves além

dos gritos dos fetos jogados no lixo

dos loucos que discutem pelas praças

com moscas e mendigos

diz, ó Dionísio

que piratas tu transformarás em pedra

que hera tu trarás para os muros da cidade

que febre cobrirá o pântano dos corações apodrecidos

pelo gelo da ganância

que o sexo dos homens enlouqueça

e as prostitutas ganhem asas

vejo um pão amassado

por prensas de papel-moeda

vejo cédulas onde corre sangue

e sangue cheio de cifrões

ó Moira que paira sobre deuses e abismos

estende tuas asas

sobre os mortos de papel

pesai os ossos

dessa fábrica do medo

minhas letras são tintas de angústia

ouvi o eco dos deuses

as paredes gritavam

quem redimirá os mortos, quem

libertará o gênio da terra, quem

derramará a água do futuro

deuses, sou só um poeta

um bicho cósmico uivando no espaço

não me peçam para redimir o mundo

flutuo sobre pontes, entre palavras

procuro o amor absoluto

tenho os pés feridos, inchados

meu calcanhar é o coração

não me peçam uma canção pelos mortos

não me peçam sementes, estradas, girassóis

tenho ombros onde esferas se derramam

germinando tempos

tenho olhos que enxergam cosmos

no coração de uma menina

ó vozes em tibetano antigo

vozes em dialeto de cristal

os ossos gritam sob a terra

vozes de escravos, vozes de índios

sangue misturado ao milho

carne de Mani

não posso redimir o tempo

não posso deter

a marcha dos elementos

eu que achei o amor

em forma de nereida

eu, que naveguei os mares do inferno e as águas da esperança

sou somente um gesto

asas que se abrem mais que as horas

liberdade que flutua, dente de leão

não me peçam a redenção

sou poeta

meu coração tem todos os gritos

não posso redimir o mundo

estou

só.


24 setembro 2007

A Burocracia Sindical

Se acrescentasse mais um r à segunda palavra do título acima nem por isso estaria errado, pois a verdade é que o movimento sindical está a morrer de asfixia, sufocado pelos tentáculos da burocracia que desde um longo tempo aprisiona o movimento.
As direções que atualmente conduzem o movimento estão, na sua maior parte, desde meados dos anos 80 ou 90 nas direções dos sindicatos, sem possibilitar o surgimento de novas lideranças e/ou novas expressões que tragam a tônica real das massas para os sindicatos.
Porque o movimento sindical é um movimento de massas, das massas trabalhadoras; ele perde o sentido se deixa de expressar, em sua essência e em sua organização, essa dinâmica interna da classe trabalhadora, que gera em seu seio as expressões individuais capazes de pensar alternativas diferentes às contradições do capitalismo.
O discurso que escutamos hoje das direções que estão à frente do movimento se assemelha, e muito, ao discurso das próprias empresas e não ao discurso dos trabalhadores: a primeira impressão que dá é que esse discurso se ampara num cientificismo que justifica suas mudanças amparado em dados estatísticos, em teorias científicas e econômicas que têm a pretensão da verdade.
Mas de fato esse discurso só expressa que as direções não conseguem mais manter o distanciamento necessário para pensar as proposições das classes trabalhadoras, porque na sua maior parte já foram cooptados pela essência da própria burocracia - que precisa da estabilidade e do imobilismo para garantir a posição dos dirigentes -, ou foram cooptados pelo próprio capital, em outras palavras, foram tragados pela lógica cruel da história e agora se repetem como farsa.
A verdade é que mesmo a ciência é uma construção ideológica, e os dados econômicos com que às vezes os sindicatos brandem aos quatro ventos justificando suas estratégias, também eles são construções ideológicas que podem e são manipulados.
É como na campanha salarial dos bancários, onde uma das propostas apresentadas defende a idéia de se discutir remuneração variável, um item que com certeza interessa mais aos bancos que aos trabalhadores, incorporando ao discurso da classe trabalhadora os interesses patronais; ou quando um ou outro dirigente diz ser inviável discutir a idéia de um novo PCS ou a conquista da isonomia nos bancos públicos, sem entender que a posição a ser assumida por um dirigente sindical é a de defender a classe trabalhadora e não os interesses da empresa.
Não existe relativismo moral na luta de classes, ou você está de um lado ou você está de outro, não há meio termo; se as direções sindicais começam a expressar esse relativismo moral, de que seus discursos soem tão ambíguos que não conseguimos distinguir de que lado eles estão, é um sinal claro que essas direções estão ultrapassadas e precisam ser substituídas urgentemente.
Não pode haver relativismo moral no movimento sindical, volto a insistir: é comum hoje em dia vermos ex-dirigentes sindicais trabalhando em estatais ou empresas públicas, assumindo posturas antitéticas com suas posições anteriores, quando defendiam com unhas e dentes a classe trabalhadora da qual agora eles esquecem e muitas vezes perseguem.
Se os trabalhadores não assumirem uma postura crítica em relação aos sindicatos e centrais sindicais, se os trabalhadores não se envolverem com o movimento para criarem novas estruturas e novas propostas que apontem uma saída para o labirinto em que estamos nos metendo, nós teremos um futuro sombrio, porque o fato concreto é que os capitalistas continuam unidos em torno do ideal do enriquecimento a qualquer preço, à custa dos direitos dos trabalhadores, da natureza e da própria vida.
Então, é preciso vida nova para os trabalhadores: mais democracia, novos valores e novas idéias para nortearem o movimento e nos ajudar a construir alternativas ao abismo capitalista.

08 setembro 2007

Metas


Enquanto a ONU fixou as metas do milênio, que dizem respeito a questões sócio ambientais, creio que precisamos fixar as metas da psique, um roteiro de salvaguarda psicológica contra a mal disfarçada massificação e entropia de tudo o que é psíquico e individual.
As metas do milênio, prontamente, se colocam como tentativa de solução para uma série de problemas, como o analfabetismo, a fome, a miséria, etc; não discutirei aqui se essas metas de fato podem atingir o cerne dos problemas ou se se trata de mais uma mis-en-cene, cortina de fumaça a ocultar a gênese e o epicentro do terremoto: que há uma insolúvel contradição nas sociedades e economias atuais. O problema que me coloco é o de que, na medida em que cresce a dinâmica estúpida da massificação e da concentração urbana nas grandes metrópoles, cada vez mais haja menos oportunidade de desenvolverem-se indivíduos, que cada vez menos as pessoas tenham a oportunidade de pensar em si mesmas como pessoas, e não como peças de uma grande engrenagem.
Relega-se a vida psíquica, ou vida interior, a um epifenômeno sem importância, e quando porventura se fala em fenômeno psíquico é para se falar na consciência, quando se discute uma ou outra moral. A vida psíquica é muito complexa para ser relegada como fenômeno marginal e muito vasta para ser vista somente pelo prisma da consciência. Aplica-se em relação a vida psíquica o mesmo critério utilitarista que temos aplicado em relação a toda a vida, de várias partes subordinadas a um todo - sendo que esse todo é uma esfera vazia e sem horizontes - o lucro.
A bem da verdade, a vida psíquica - ou espiritual - é tão ampla quanto qualquer fenômeno da natureza - com a mesma carga de complexidade, acrescida das nossas especifidades humanas, e suas expressão é dinâmica. O instinto, o inconsciente, a consciência, são uns tantos fenômenos meio a muitos outros que perfazem nossa verdadeira vida interior. A educação, que seria o instrumento mais adequado para projetar futuras gerações de indivíduos, infelizmente enfatiza nossas condutas gregárias, pouco dando atenção às predisposições, aos intercâmbios e turbulências da própria psique.
É preciso que fique bem claro que o universo do espírito não pode ser medido por padrões utilitários, morais ou mesmo financeiros. A parca e idiota visão utilitária não alcança as dimensões secretas e sagradas da vida, e essa visão é uma parcela mínima da história da humanidade. Não podemos medir o espírito com uma balança de papel-moeda.
Não há nenhuma preocupação, por parte dos governos, com as conseqüências psicológicas da vida social atual nem com as conseqüências sociais da vida psíquica atual. Comumente, hoje se vive como máquina, mesmo o lazer é só descanso programado: ainda não somos moto-contínuo. Pouco se exerce a autonomia interior, pouco se enfatiza as qualidades interiores do distanciamento e da solidão - porque vão contra tudo o que gregário; mas nenhuma grande obra humana surgiu como conseqüência do burburinho: as grandes obras são produtos de uma extrema concentração em si mesmo ou na natureza, e essa extrema concentração exige solidão.
Talvez seja esperar demais que os políticos incluam, entre suas proposições, uma preocupação com a vida interior das pessoas: ora, se a própria medicina voltou ao mais tosco materialismo psíquico, com sua malfadada concentração na bioquímica e na fisiologia, o que dizer então dos políticos, acostumados a moverem-se em esferas bem mais mesquinhas e menos sérias ?
É um dado real que o homem adoece psiquicamente, e ele adoece porque existe psiquicamente. Mas perceber a si mesmo, olhar para si mesmo e notar-se como ente singular, diferente dos demais, é fruto da educação e da introspecção, do olhar sobre si mesmo, coisa que não se faz vivendo-se na estúpida mecanicidade em que se vive.
Se os governos, corporações, empresas, não dão importância ao fato psíquico, cabe a nós, que conhecemos a importância da vida espiritual do homem, fixarmos nossas metas, coletivas e individuais, como compromissos e como roteiros orientadores. Elas são:
1- Não posso me esquecer que sou um ente individual e é uma das razões da vida descobrir o porque de minha singularidade.
2-Uma cultura do indivíduo não se opõe a realizações coletivas, desde que elas representem significativas aquisições de humanidade. Então: sempre colaborarei com realizações coletivas, desde que...
3-Sempre manterei minha necessária introspecção, como maneira de olhar para dentro de si mesmo.
4-Nunca se deixar levar pela intensa massificação, nunca se perder em meio a massa atordoada.
5-É necessário solidão para vivenciar o espírito.
6-Nunca relegar a segundo plano as necessidades psíquicas: elas são tão importantes quanto as necessidades físicas.
7- Adquirir cada vez mais cultura para aumentar as possibilidades de compreensão: a cultura escolar ( do colégio às universidades ), é tosca e incipiente; a cultura de massas é reducionista e estupidificante: é preciso criar o próprio paideuma.
9- Nunca subordinar a vida do espírito a qualquer evento externo, a não ser que o evento externo corresponda a alguma necessidade interior.
10- É preciso encontrar o ritmo das circunstâncias e fazê-lo tocar a nosso favor.
Vê-se que nossas metas são quase não metas, são nichos de orientação em meio à paisagem atribulada. Porque o espírito e as coisas do espírito são como a natureza, sua medida é a de milênios, e ainda que o eu não o possa abarcar, é isso que importa, um horizonte oculto mas real.
Quiçá no futuro faça parte do planejamento humano as necessidades psíquicas, tendo por fim a sempre crescente e maior humanização.

01 setembro 2007

Poema do AntiCapitalismo Visceral

Quero preservar meu sangue vermelho
das maquinações verdes dos banqueiros
quero salvar minha pele
do ócio gorduroso
do dinheiro

quero lavar meus olhos, tirar
o véu nefasto da usura
afastar de minha porta

o cancro terminal
das bolsas de valores
explodir em dinamites finas
a pura idolatria
dos servos de Mamon
queimar, com a virulência da palavra
a cal amarga
do dinheiro
vomitar em raios de luz
a servidão voluntária
ao trono financeiro
audaciosamente desprezar
o tilintar vazio
do ouro
rasgar tratados
enforcar
os deuses santos do capitalismo

quero bem mais
que horizontes subterrâneos

sim
à alegria vertical do sol
ao coração secreto do mundo
aos olhos meigos do albatroz
aos espaços
ao silêncio
ao não de uma noite de deuses

Somos todos deuses
no umbral do inaudito
somos todos puro devir

não nos seja mais que a vida

seguir.

O Sonho das Elites

A declaração infeliz do sr. Paulo Zutollo- presidente da Phillips do Brasil: “Não se pode pensar que o país é um Piauí, no sentido de que tanto faz quanto tanto fez. Se o Piauí deixar de existir ninguém vai ficar chateado” revela aquilo que é o sonho das elites brasileiras - o sonho de um país uniforme,com cara de Estados Unidos, homogeneizado pelo poder do dinheiro, livre daquilo que eles, da elite,no fundo consideram uma mácula: a heterogeneidade do povo brasileiro, as tradições e as diferenças que tornam efetivamente este país no que ele é: um permanente laboratório de criatividade e vida.Pessoas como essa,que nem merecem ser lembradas,pensam que o país é só o sudeste e o sul, como se qualquer lugar acima de Minas Gerais e qualquer sotaque além do mineiro fosse uma ofensa aos olhos e ouvidos delicados da burguesia.A verdade é que essa burguesia, que come caviar e se diverte jogando ovos podres na população pobre- como fez o outro pária filho da burguesia vulgo Boninho – ou espancando trabalhadoras ao amanhecer, essa burguesia cresceu sobre o sangue e suor de negros e pobres, nordestinos ou não; enriqueceu a custa de facilidades favorecidas pelos diversos governos, explorando mão de obra barata, pouco se preocupando com o destino do País, pouco se responsabilizando pelas conseqüências ambientais ou sociais de suas atividades; mas essa mesma burguesia é incapaz de criar qualquer coisa, incapaz de produzir beleza, incapaz de produzir novos valores; infelizmente, a lógica sanguessuga do capitalismo também impera no domínio moral e na esfera dos valores; não é à toa que a burguesia assimilou,copiou valores da aristocracia decadente e não é à toa que a burguesia nacional macaqueia as elites de fora,porque são incapazes de criar qualquer coisa que seja nova.Essa burguesia não compreende a geléia geral brasileira, como diria o poeta piauiense Torquato Neto. O espelho em que ela se olha é uma miragem fragmentada apontada para o hemisfério norte. Mas a verdade é que é ao povo que devemos nossas maiores obras, nossa verve mais criativa, nosso estímulo ao que é grandioso; é ao povo, o inventa línguas, como disse, se não me falha a memória,o poeta russo Klebnikov, que somos tributários da matéria prima com que desenhamos esse país.
Exemplos não faltam: do milagre que é a obra Grande Sertão:Veredas à genialidade do Deus e o Diabo na Terra do Sol à música de Villa Lobos, que nunca se envergonhou de ter recebido das fontes populares a matéria prima para sua música.A burguesia nunca compreenderá o Piauí, o Ceará, aliás, o Nordeste ou o norte do país, nunca compreenderá nossa heterogeneidade étnica, nossa diversidade cultural; incapaz que é de criar, também é incapaz de entender as tradições,o solo onde o povo germina sua cultura e promove o húmus da cultura.
Então, sr. ZuTOLLO, qualquer parte desse país que venha a desaparecer fará falta,muita falta, não só pelo espaço geográfico que a tanto custo conquistamos ao longo da história, mas principalmente pelo povo que o habita; a burguesia sim pode desaparecer, assim como desaparecem os sonhos ruins e os monstros dos pesadelos: depois de sugarem nossa energia, fogem quando chega o sol, desaparecem sob a luz.
Que a história então amanheça.

25 agosto 2007

Mini Postagem: Geraldo Vandré Cantando Aroeira

Está ali ao lado, na barra de vídeo: Geraldo Vandré cantando Aroeira. É um momento único; quem conhece a letra de Aroeira sabe o que quero dizer: a gravação de 1967 - a ditadura aprofundava cada vez mais suas garras tentaculares sobre o poder e sobre o povo - e ele vai cantar Aroeira no festival da Record! Transcrevo a letra:

Vim de longe, vou mais longe
quem tem fé vai me esperar
escrevendo numa conta
pra junto a gente cobrar
pro dia que já vem vindo (bis)
que esse mundo vai virar

Noite e dia vem de longe
branco e preto a trabalhar
e o dono senhor de tudo
sentado mandando dar
e a gente fazendo conta
pro dia que vai chegar
a gente fazendo conta
pro dia que vai chegar

marinheiro, marinheiro
quero ver você no mar
eu também sou marinheiro
eu também sei governar
madeira de dar em doido
vai descer até quebrar:
é a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar


Nunca fui fã da arte dita engajada, porque na maior parte das vezes ela vira uma arte subordinada a poderes e interesses e se a arte realmente quiser contribuir com a liberdade ela também tem que ser livre; porém, confesso que essa música sempre me fascinou, pelo seu ritmo, pela sua força. Eu a escutava quando era criança e não entendia bulhufas do que ele estava falando, mas mesmo assim a música exercia um fascínio enorme.
Ainda gosto dela, mas tenho sempre minhas reservas quanto à arte engajada. Breton já nos alertara, há muito tempo, sobre os riscos de submeter a arte a ditames programáticos e políticos, porque na realidade o poder da arte, sua veia transgressora, está em fundir a subjetividade do artista com o mundo objetivo, e assim romper a mecanicidade estabelecida pela lógica e pelas instituições, sem precisar direcioná-la a um objetivo político específico. Claro que há também possibilidades que na arte engajada aconteça grandes obras - Brecht e Maiakovski estão aí como prova. Mas se formos comparar, será que não é, visto de hoje, depois de tudo que aconteceu, será que não fica claro que a melhor parte da obra de Maiakovski é sua lírica e que, de alguma maneira, a poesia de Mandelstan ou mesmo de Pasternak não parecem hoje mais políticas, pelo seu significado frente ao estado totalitário de Stalin ? E mesmo Brecht não nos soa um tanto hipócrita, com seu silêncio consentido sobre os crimes de Stalin ?
Ora, Benjamin Peret era terrivelmente revolucionário e nunca escreveu uma poesia programática ou política; em compensação, o grande Paul Eluard alugou sua pena para os filhos de Stalin...
Mas mesmo assim gosto de Aroeira; e ela parece mais forte quando olhamos os tristes dias de hoje, onde a massa anônima parece se contentar com a miséria ou então não sabe como gritar, não sabe como cantar; ela nos parece mais forte, quando vemos a elite sentada em seus castelos de areia sugando a natureza e os homens, esperando o fim da história. Então, aroeira neles!

19 agosto 2007

O Messianismo Político

A política deveria ser a arte do concreto; não quero reduzir a política, ao dizer isto, a uma dimensão empírica, vazia, sem ideais; longe de mim querer esvaziar uma atividade humana que hoje por si só já carece de substância. O que quero dizer é que ela deveria se aplicar a construir possibilidades tangíveis de administrar o caos - ou seja - dar conta da multidiversidade humana, sem suprimir as diferenças que fazem parte do jogo dialético da existência.
Mas a tarefa política deveria ser uma tarefa de todos e não de políticos profissionais; se houvessem canais efetivos para a participação política dos cidadãos e se estes efetivamente participassem das decisões que afetam o conjunto da sociedade, seria diferente o nosso panorama político e social- onde maior a participação dos cidadãos nas decisões menor a espera por messias redentores, por agentes milagrosos que nos tirem da inércia da história.
Segundo Nerione Cardoso, Hannah Arendt falava que na Grécia antiga o ideal político era não a democracia, mas a isonomia - igualdade de participação política -, o que pressupõe que todos tenham uma mesma voz no debate político. A democracia - o governo do demos , do muito, já seria uma dominação de um grupo sobre outro, e a esfera política já estaria assim desequilibrada. Esse ideal da isonomia nos parece hoje anacrônico ou impossível, tão viciadas são as nossas instituições, tão viciada se tornou a política burguesa em seu conjunto: as negociatas são feitas escancaradamente, os políticos já se comprometem desde antes da campanha, quando fecham acordos escusos que garantirão o dinheiro que sustentará as vultosas campanhas eleitorais, e só o mais ingênuo eleitor se vê tentado a acreditar na falácia que em que a democracia se transformou. Não há igualdade de participação: a grande maioria pobre não consegue de fato interferir no jogo político pela esfera da política institucionalizada, porque esta está viciada.
Por outro lado, próprio de um país profundamente cristão, acredita-se, e muito, em prováveis indivíduos, sujeitos exclusivos que sozinhos conseguirão redimir os outro sujeitos anônimos da história: são os messias políticos, figuras emblemáticas que sempre voltam ao palco da democracia, fazendo coro ora com um ora com outro grupo, de acordo com os interesses, de acordo com sua capacidade ou não de interpretar as conveniências daqueles que o promoveram, ou de ceder ou não à pressão daqueles que o cooptaram.
O dado concreto da história é que ela não é feita de indivíduos, mas de forças; alguns indivíduos até podem encarnar parte dessas forças, se e enquanto eles se mantiverem próximos ao grupos de onde elas emanam; a sociedade é um tecido construído por diferentes grupos e só a participação dos agentes desses grupos dá a dinâmica da vida social, o impulso que a transforma.
Somos tributários dos messias políticos, e mesmo partidos ditos de esquerda e mentes ditas progressivas apostam em tais figuras, às vezes sem compreenderem ao certo qual seu papel, sempre esperando que o messias seja o agente catalisador das transformações que a sociedade precisa. Foi assim em relação ao presidente Lula, que encarnou como ninguém o papel de messias, e assim foi tratado por certos grupos, numa mistura de interesses pragmáticos por cargos e poder com uma análise política ingênua.
Acho até que os indivíduos podem ser agentes de forças transformadoras, mas eles não o são sozinhos. E o presidente Lula, para efetivar quaisquer transformações sociais e políticas, teria de contar com a ação conjunta do grupo que o elegeu - a população pobre, os sem-terra, os trabalhadores -, ele teria de optar por agir por esses grupos em detrimento dos grupos do capital financeiro, dos mega investidores, dos grandes empresários; mas não foi isso que aconteceu. Por outro lado, os sindicatos, como agentes sociais, teriam de ter mobilizado os trabalhadores para que estes lutassem efetivamente por transformações mais profundas, ou melhor, por transformações sociais, já que na realidade nenhuma estrutura foi quebrada, nenhum quadro social foi realmente modificado: ainda se arrastam as cadeias que desde séculos trazemos atadas aos nossos pés: a miséria sistêmica, a exclusão social, a corrupção, o aparelhamento do estado, as oligarquias.
Isso também como decorrência dessa inércia política, dessa comodidade que é esperar pela redenção, no lugar de construí-la. Em tempos muito duros costumamos ser muito céticos. Na realidade, sabemos que o que há é um contínuo jogo de interesses, de disputas pelo poder: nessa hora poucos lembram das promessas idealistas, das esperanças de redenção. Para quebrar essa cultura do messianismo é preciso quebrar a dinâmica ideológica-cultural que a mantém, oriunda tanto da miséria como do discurso religioso; isso não se acaba da noite para o dia - até o marxismo tem um certo sabor messiânico, sua aura mística, ainda que sem deus. É necessário atingir uma profunda consciência de si que o revele como agente de si mesmo, como sujeito participante da história, como elemento responsável pela sua própria vida frente às decisões que por ventura tomar. Sem essa consciência ainda seremos vítimas de esperanças falsas e de crenças falsas - aquelas que nos dizem que somos incapazes de fazer a história e de que precisamos de algum messias que o faça por nós.
É preciso abrir os olhos.

15 agosto 2007

Adeus utopia?

Adeus Utopia ?

A utopia é o não lugar, se seguirmos a etimologia latina da palavra; na fábula de Thomaz Morus, A Utopia, ela é uma ilha onde se construiu aquilo que parece ser um estado ideal, um estado que governa pouco porque seus habitantes têm autocontrole, porque suas leis são justas, porque, em síntese, o homem conseguiu criar um outro modelo de civilização.
Mas acontece que, na fábula do Thomas Morus, a representação de Utopia como uma ilha levanta diversos problemas, no plano da simbólica e sua interpretação. O estado ideal é um não lugar (u=não, topos=lugar), uma ilha, dando-nos a entender que a utopia é justamente isso: uma miragem, um lugar que não existe. O texto de Morus despertou, ao longo dos séculos, diferentes reações: ele não é o primeiro a imaginar sociedades ideais - Platão já tinha imaginado sua República, Bacon imaginará sua Nova Atlântida, Campanella sua Cidade do Sol -, mas é Morus quem cunhará, indiretamente, a palavra que será a origem dos pensamentos acerca de sociedades ideais ou estados ideais, as utopias que tanto têm instigado os homens.
Longe de mim falar contra as utopias, contra o pensamento que tem esperanças de uma vida diferente e nova sobre a terra, num mundo melhor, mais humano, mais justo. O problema é quando a idéia fica somente no plano das idéias, quando faltam elementos concretos para relacioná-la com a realidade: aí realmente ficamos no meramente utópico, utópico aqui revestido de conotações negativas, de quimeras construídas sem nenhum amparo na realidade.
A primeira pergunta que fazemos é: mas o que é a realidade ? Quem pode definir o conjunto de seres e situações que se desenvolvem num dado tempo-espaço em contínuas e múltiplas interações ? Quem pode dizer o que é tangível como realidade imediata ?
Os ideólogos do capitalismo sempre foram enfáticos ao desqualificarem o pensamento utópico, sempre com o argumento - travestido de certeza absoluta sob roupagem técnica - de que o capitalismo é uma conseqüência natural, uma etapa necessária e última na trajetória da libertação do homem em relação a natureza; e aí é que é mais que necessário criar, na vertente do pensamento utópico, mas não como utopias, alternativas concretas ao capitalismo, dentro da mais que complexa visão histórica que temos adquirido.
Os dados da realidade são complexos, mas há elementos que não precisam de elucidação e que estão à vista de todos: o planeta caminha para um total esgotamento, a ciência dominada pelo capital ameaça mesmo até o conceito de vida, com suas perigosas experiências no campo da genética, a miséria cresce e não há nenhuma perspectiva de solução pelas vias capitalistas, ao contrário; se depender dos senhores do capital, a perspectiva da escravidão ou da semi-escravidão nunca é totalmente descartada, haja vista o que empresas como a Nike ou Rebook fazem nas terras orientais; ao mesmo tempo, os grupos da sociedade civil, como os sem-terra, tentam encontrar saídas, criar alternativas, que cada vez parecem mais longínquas.
No Brasil de hoje, o movimento sindical, que foi durante um bom tempo a vanguarda dos movimentos sociais, está praticamente engessado, engolfado pela burocracia e pela falta de democracia: muitos sindicatos se assemelham a empresas - não só no sentido de procurarem uma administração racional- mas de incorporarem a sua visão de mundo valores da práxis capitalista, espelhando de certa forma a democracia burguesa que, convenhamos, não é democracia. Os trabalhadores se sentem perdidos, em meio ao mar do desemprego e da exploração e os sindicatos não conseguem coordenar uma resposta à opressão. Os sindicatos deixaram de ser espaços da utopia.
É preciso então, dar adeus a utopia e acreditar no pensamento utópico: isso não é um paradoxo; o que quero dizer é que é preciso procurar construir alternativas concretas ao capitalismo, não acreditar que o estado burguês neo-liberal é a última etapa da história, ao mesmo tempo que desprezar tudo o que seja quimérico ou dogmático. A história é dinâmica; o capitalismo é só uma etapa da história e, diga-se de passagem, uma etapa recente. Civilizações antigas que nunca conheceram o dinheiro e às quais não se pode aplicar o critério clássico de classes tiveram um alto padrão de vida e civilizações futuras também poderão construir, sobre as estruturas desenvolvidas pelo capitalismo, uma nova sociedade onde a vida do homem não esteja separada da vida do planeta e onde o homem não seja inimigo de si mesmo.
Thomas Morus criou uma obra que é um enigma; não vou interpretá-la porque não tenho instrumentos para desvendar sua carga simbólica, sua cabala, sua gematria; mas soube como ninguém instigar os homens a vislumbrarem uma paisagem ideal, com a esperança de sempre transformarem-na em real.
Adeus, utopia...