20 janeiro 2009

Não Contem os Mortos

Não contem os mortos
os olhos deles já cheiram a infinito
os abutres da cidade comemoram
o transe do terror
não temos mais paciência com o cinismo
aquelas vozes de números, não ouço mais
a morte é una, bloco de metal
não contem os mortos
eles se contarão sozinhos em mil e uma vozes
em compasso de sonho seus gritos ganham asas
não contem os mortos
eles foram apagados como os círios de uma menorah.

14 janeiro 2009

O Cinismo em Ação

Uma guerra, qualquer guerra, é uma coisa suja; não há nada que possa ser considerado belo ou agradável, seja do ponto de vista estético ou ético, em uma guerra. Mas creio que o que de pior há é a retórica dos vencedores e invasores, que procuram justificar seus crimes atrás de uma verborragia cínica, que cobre com um verniz hipócrita as cores sombrias da guerra.
O ataque de Israel na Faixa de Gaza já foi condenado pela ONU, que qualificou a ação de Israel como passível de punição como crime de guerra; agora vem a Primeira Ministra de Israel e tem o cinismo de falar que "essa guerra fará bem ao povo palestino, porque acabará com os extremistas do Hammas"?
É possível cinismo maior que esse, falar para um povo que está sendo massacrado, povo este que já perdeu mais de 200 crianças assassinadas pelo exército de Israel, é possível falar que isso é um bem ?
É uma medida de cinismo que não é possível tolerar. Enquanto a Palestina chora seus mortos, Israel conta os ataques do Hammas que quase deram certo. E não contentes em destruir casas, se apropriar de poços de água, matar crianças e velhos, Israel ainda destruiu um dos poucos cemitérios locais; ou seja, os palestinos da Faixa de Gaza não podem nem enterrar seus mortos...
Há uma intencionalidade macabra nesse gesto; é como, para um egípcio antigo, a violação da múmia, pela implicações que esse gesto traria para a alma do morto. O ato de enterrar os mortos tem uma significação especial no contexto religioso, no âmbito da cultura árabe e principalmente na significação que esse ato se reveste para as famílias e sua memória coletiva.
Destruir um cemitério é tentar tirar a significação da morte como evento coletivo, além de fazer com que os mortos se acumulem na cidade; ou seja, os palestinos, que já não podiam cuidar dos vivos agora não conseguirão cuidar dos mortos: sem água, sem energia, com os hospitais operando já além do limite, sem alimento, sem um cemitério... o que mais os israelenses vão tirar do povo palestino ? O ar que eles respiram ?
Cara Sra. Tzipi Livni, o povo palestino não agradecerá por essa guerra; o sangue que suja o solo palestino não é bom adubo nem fertilizante: ele espalha em ondas um ódio que se acumula com o tempo e que sempre cresce, porque permanecem as razões que o justificam.
Se há alguma significação na história - é difícil falar sobre o presente, porque estamos dentro dele -, se a história é prenhe de sentidos que não conseguimos ver no presente, o sentido possível dessa tragédia coletiva vivida pelo povo palestino é o de que a ordem neoliberal do mundo falhou completamente e que não é mais possível tolerar a falácia de sua diplomacia de fachada.
Será preciso que se encontre um novo horizonte civilizatório, outra perspectiva onde os povos se respeitem na justa medida; o capitalismo macula as relações, sejam entre pessoas ou entre povos; é preciso que se conceba outra escala de valores humanos onde o humano prevaleça; esse não é um ideal utópico, mas uma necessidade maior do nosso presente, onde a natureza se esgota por conta da agressão do capital, onde os homens se matam em guerras patrocinadas pelos interesses do capital, onde a beleza se esvai ou se silencia, calada pela brutalidade do capital.
Mas não dá para aceitar esse cinismo de tempos de guerra; massacre é massacre, morte é morte, sangue é sangue, destruição é destruição: não existe morte relativa, não existe meio sangue, não existe meio massacre - as palavras designam aquilo que as coisas são; só a retórica do cinismo tenta esconder e acobertar a natureza criminosa da guerra.
Mas não conseguirá.

09 janeiro 2009

Não Há Mortos Em Gaza

Não há mortos em Gaza
eles estão ausentes
nos escombros dos edifícios

eles estão calados
nos palanques, nos comícios

eles estão quietos
nas trincheiras, nos ofícios

eles não falam
nos círios acesos, nos obuses

eles não choram
corpos estraçalhados sob a mira dos canhões


não há mortos em Gaza
eles sobrevoam a horizontalidade da morte

eles nadam num mar de esperanças desfeitas

eles escorrem por um túnel profundo
rasgado numa menorah

eles cantam a sura do profeta
enquanto bebem vinho de tâmara


não há mortos em Gaza
eles percebem o silêncio que emana das tvs

eles recebem as flores da utopia

eles esperam pelo sol da Palestina

eles dançam com anjos e huris no paraíso

eles cavalgam em corcéis e tempestades

eles cantam com vozes de crianças


não há mortos em Gaza
não há mortos em Gaza

mortos estamos todos nós.