No livro Cartas da Zona de Guerra de Michael Moore, soldados norte-americanos que estavam combatendo no Iraque, diversos deles se perguntavam como haviam se deixado enganar pela propaganda mentirosa do Governo Bush, que os convencera a irem para a guerra em nome da “Liberdade e Democracia” quando o que de fato estava em jogo era petróleo e dinheiro. Como aqueles que se alistaram em nome da guerra foram convencidos de tantas mentiras e puderam assim se engajar para a morte ? A propaganda do governo Bush os convencera.
A propaganda, o marketing em si, é sempre essa faca de dois gumes: as técnicas que o marketing domina servem tanto para fazer propaganda do governo Bush quanto para fazer propaganda dos Médicos sem Fronteira, por exemplo; porque conforme a natureza da Ciência do século XX, a técnica foi desenvolvida sem que houvesse um diálogo mais fecundo com a ética, e o capitalismo soube se apropriar bem dessa ferramenta que o marketing é, tanto para gerar novas demandas de consumo quanto para fazer a defesa ideológica de suas premissas morais e sociais, sua capacidade de convencimento e principalmente de aliciamento e cooptação, como quando todos os meios procuram nos convencer que uma certa degradação ambiental pode não ser desejável mas é aceitável, é o preço a pagar pelo progresso, ou então quando tentam convencer os trabalhadores – escravos obrigados a venderem sua força de trabalho – que a lógica predatória do sistema – a competição desenfreada, a velocidade do mercado de trabalho, o ritmo alucinado de trabalho, o estresse e a perda da privacidade, que eles fazem parte da contemporaneidade e são elementos da paisagem humana que vieram para ficar.
O chamado endomarketing se enquadra nessa categoria de propaganda ideológica de convencimento, maneira que as empresas encontraram de procurar cooptar os trabalhadores para suas estratégias produtivas, ao mesmo tempo que ocultam as reais condições de trabalho e a natureza concreta da exploração da força de trabalho, o fato de que os interesses concretos das empresas serem antagônicos com os dos trabalhadores.
Os especialistas da área definem o endomarketing como “(...)um processo que visa adequar a empresa ao atendimento do mercado, tornando-se competitiva a partir do envolvimento de seus clientes internos à estratégia organizacional.”1 Ou seja, o que de fato determina a ação do endomarketing são as necessidades e prioridades externas da empresa em face do mercado, e não o ambiente interno em si. O mesmo autor cita os instrumentos operacionais do endomarketing – vídeos, jornais e revistas de circulação interna, palestras, etc – e diz: “o endomarketing é umas das soluções para os problemas de comprometimento dos funcionários com a organização.” Mas o que o autor não fala é que o comprometimento é na realidade o resultado da relação do trabalhador com seu ambiente de trabalho, uma via de mão dupla: se o ambiente é bom, o trabalhador tende a se comprometer com os objetivos da empresa. Mas não é um processo mecânico e nem pode ser imposto de cima para baixo como uma exigência formal que possa ser medida sem levar em conta os elementos subjetivos e objetivos que estão em jogo.
A principal razão do endomarketing – razão não declarada – é convencer os trabalhadores da necessidade de sua própria escravidão e da licitude da exploração, ou seja, fechar os olhos para o que é óbvio,mas que o discurso do capital torna peça de sonho, como se o discurso fosse maior que a realidade. Um exemplo disso é a revista Gente da Caixa, revista de circulação interna da Caixa Econômica Federal dirigida a seus trabalhadores. Revista de aspecto gráfico agradável e matérias leves que cumprem bem com a função de procurar cooptar os trabalhadores, escondendo ou mascarando o óbvio da exploração cotidiana, da falta de condições de trabalho, do estresse e do adoecimento a que os trabalhadores são submetidos.
O filósofo alemão Theodor Adorno dizia que “(...) pertence ao mecanismo da opressão vetar o conhecimento da dor que ela produz.” E é isso que procura a Revista da Gente, mascarar a dor produzida cotidianamente pela Caixa aos seus trabalhadores, através das metas abusivas, dos planos mirabolantes, das filas sem fim, da ausência de uma gestão eficaz e de uma política real de RH, enfim, através dos mecanismos de opressão vinculados à exploração do trabalho em si, que têm seus efeitos ampliados por conta do descaso da Caixa com seus trabalhadores ou pela incompetência da direção da Caixa em seus processos internos.
Um exemplo: a Caixa sabia a tempos que teria de fazer a substituição dos terceirizados, mas não organizou nenhum plano geral contingencial de orientação às unidades para que as mesmas incorporassem os serviços que eram de competência dos terceirizados. Resultado: excesso de trabalho e horas extras, estresse e adoecimento; nada disso apareceu na revista Nº 26, de março/abril desse ano, como também não apareceu nada sobre o aumento dos casos de doenças psíquicas e mentais dentro da Caixa, porque falar isso seria assumir a parcela de culpa que a Caixa tem sobre a saúde abalada de seus trabalhadores.
Não, a estratégia do endomarketing da Caixa é esconder as reais condições de trabalho, mascarar as doenças, ocultar o fato de que apesar das aparentes tentativas de mudar a gestão da empresa ela continua sendo loteada politicamente e se aproxima, cada vez mais, no seu modelo de gestão, dos bancos privados – onde os resultados sempre acontecem à custa da saúde dos trabalhadores.
É preciso desmascarar o discurso do endomarketing – em particular da retórica da Caixa na Revista da Gente, reduzí-la aquilo que ela realmente é: discursos e maneiras de seduzirem o trabalhador para sua própria escravidão, gestos verbais e mis-en-cene que tentam ocultar do trabalhador a opressão da luta de classes.
Da próxima vez que ler a Revista da Gente, pense não tanto no que que você vê, mas naquilo que está oculto, aquilo que a revista silencia: nos trabalhadores que adoecem por causa do estresse, na pressão por metas, na truculência sempre freqüente na gestão da Caixa – e essa gestão já deu inúmeros exemplos disso. E aí pode ter certeza, o que está oculto, aquilo que a Caixa silencia, é seu verdadeiro retrato.