26 abril 2010

A Revolução dos Cravos e 48


Era primavera, como agora. Mas o ar daquela época era mais carregado, depois de 48 anos de ditadura Salazarista. Como pode durar tanto, é o que nos perguntamos. Mas o fato é que o povo tomou as ruas, e a alegria contaminava todos, e os cravos vestiam de vermelho os cantos antes obscurecidos por tanta dor.
Aqui no Brasil sabemos muito pouco o que foi a ditadura Salazarista, desconhecemos o quantum de sofrimento do povo português nesses 48 anos de ditadura. Um documentário recente, 48, de Suzana de Souza Dias, nos dá uma imagem precisa do que foram aqueles longos e amargos anos. Não é que o povo não tenha lutado. O povo lutou; e muito.Durante as chamadas guerras coloniais então, a luta foi intensa. Mas muitas foram as prisões, as torturas, os assassinatos. Nesse documentário visceral, escutamos as falas de vários presos políticos enquanto contemplamos suas fotos, tiradas pela temível PIDE; são pessoas comuns, trabalhadores, homens e mulheres, que porventura militaram em algum sindicato, ou que tiveram somente a desventura de terem relações com alguém de esquerda; homens e mulheres torturados, machucados, humilhados.
As imagens aparecem e desaparecem lentamente, enquanto escutamos as vozes embargadas, ainda tomadas pela emoção, tantos anos depois. Em alguns momentos, a tela fica totalmente escura e só escutamos as vozes doloridas a recordarem um passado que queriam esquecer.
Contam-nos da terrível tortura do sono, onde alguns chegaram a ficar cerca 15, quase 20 vinte dias sem poderem dormir. e como não dormir era como morrer lentamente. Escutamos o depoimento pungente de uma trabalhadora que, ao chegar à PIDE, foi humilhada pelas oficiais por ter vindo para a prisão de chinelo, enquanto elas, oficiais e torturadoras, estavam bem vestidas e belas.
Mas um dos mais belos momentos do filme é quando outro ex-preso fala da revolução dos cravos, de como custou a acreditar que Salazar tivesse caído e de como chorou de alegria ao ver as ruas tomadas de gente e de flores, e a alegria era tanta que ele quase morria, tamanha era a felicidade porque o tempo de trevas chegara ao fim.
O filme transita entre luzes e sombras como se a nos indicar a dor do outro que agora tornamos nossa. E não há tempo que possa interromper os caminhos da dor, e não há tempo que possa esconder a dor. É um belo documentário.
Ontem, a Revolução dos Cravos completou 36 anos, e aqui do nosso outono saudamos essa inesquecível primavera portuguesa, onde o vermelho suplantou a dor e deu cara à liberdade...

13 abril 2010

As Sutilezas do Discurso ou A Retomada da Direita

Tenho observado, não sem inquietação, a movimentação que a direita brasileira tem feito no início desse ano para se rearticular, mas se rearticular não só em torno de alianças políticas, como fica claro no caso da candidatura do vampiro da Moóca - José Serra, onde todos os tradicionais partidos de direita(como os democratas e o psdb) e os nem tão tradicionais - como o pps, pululam de alegria incontida na esperança de retomarem o poder via eleições. Falo de uma rearticulação mais profunda, uma rearticulação do discurso e das idéias que têm norteado o ideário neoliberal no Brasil, profundamente desgastado por conta da última crise e da própria política social do governo Lula.
Esses defensores do Estado mínimo, críticos acerbos da presença do Estado na sociedade e na economia, mais principalmente críticos violentos de qualquer estado de bem estar social, organizaram, já durante esse ano, dois eventos de considerável importância(pelas pessoas que mobiliza e pelo simbolismo do próprio evento), o 1º Fórum Liberdade de Expressão e Democracia, que aconteceu em São Paulo, e o XXIII Fórum da Liberdade, que está acontecendo em Porto Alegre.
Nomes pomposos que escondem os objetivos verdadeiros, as verdadeiras intenções da camarilha que lá se reúne - garantir o poder das elites, reforçar a imagem do capitalismo como modelo econômico necessário, afastar de vez da mente das massas quaisquer pretensões a um Estado socialista ou mesmo a um estado mínimo de bem estar social.
O tal fórum da liberdade ainda está a acontecer, mas já possui algumas pérolas, como a de Stephen Kanitz dizer que o capitalismo não foi o culpado pela crise, e os ataques do sr. Rodrigo Constantino ao socialismo. O engraçado, seria cômico se não fosse trágico, é o uso que tais pessoas fazem de palavras como liberdade e democracia: a liberdade para eles é um pássaro cativo do capitalismo, ao qual se encontra aprisionada, como Prometeu a sua rocha; e democracia é o não tão sutil sistema de governo em que vivemos, a democracia representativa que, todo sabemos, é um jogo de cartas marcadas.
Saber que tais pessoas falam de liberdade sem discutir seu estatuto ontológico, sem se aprofundarem sobre a natureza mesmo da liberdade, nos dá náuseas e não sem motivo. Acontece que a sociedade capitalista que esses senhores defendem e que já dura por aí cerca de cinco, seis séculos, acontece que essa sociedade nunca foi um exemplo de liberdade; ao contrário, ela se constitui sobre a supressão da liberdade, sobre a homogeneização e normatização, sobre a coerção das diferenças. A única liberdade que essa sociedade conhece é a liberdade do capitalista de produzir e comprar o que quer que seja e a liberdade do trabalhador de vender sua mão de obra. Vê-los desfiar o rosário da liberdade quando na realidade anseiam pela retomada do poder federal e com ele o poder de reprimir e dar rédeas soltas aos violentos instintos neoliberais nos preocupa. Porque enquanto a direita articula seu discurso e sua ação em torno de objetivos comuns, a esquerda luta de maneira fragmentária, às vezes divagando mesmo sobre o que fazer.
Por outro lado, é preciso desmascarar essas ações, desmascarar essa liberdade de fachada que os capitalistas defendem com unhas e dentes: eles sonham acordados com os dias em que poderão vender até a própria alma, sem restrições, sem traumas; os dias em que poderão parcelar não um título de terra, mas a própria Terra, sem que isso lhes incomode ou lhes deixe moralmente abalados.
O vampiro da Moóca também fala em liberdade, mas não hesita em mandar espancar professores, em colocar espiões em passeata, como fez a PM paulistana numa das últimas manifestações da greve dos professores paulistas; é essa liberdade que eles conhecem.
Isso me lembra uma música da genial Violeta Parra, que com muita clareza dizia: "miren como nos hablan de libertad/ cuando de ella nos privan en realidad/ miren como pregonan tranquilidad/ cuando nos atormenta la autoridad/ miren como nos hablan del paraiso/ cuando nos llueven balas como granizo/ (...) el que oficia la muerte como um verdugo/ tranquilo esta tomando su desayuno.
Essa música sintetiza bem o que está acontecendo agora nessa retomada da direita: belos discursos, a liberdade em primeiro lugar, mas o que se projeta é escorraçar o povo dos poucos lugares que ele ousa ocupar ou mesmo requisitar; o que se projeta é retomar de novo o poder para que o projeto neoliberal volte com todo seu furor, com sua cega e falsa mansidão, espalhando a miséria e recolhendo os despojos pelos lugares onde passa.
Então, ainda que eu não seja do PT nem fã incondicional do governo Lula, é preciso ficar alerta a essa agitação histérica da direita roxa, porque, não tenham dúvida, uma vez eleito o vampiro da Moóca, as elites jogarão fora seus escrúpulos pré-eleitoreiros e retornarão ao poder quais bandos de abutre que há muito tempo esperam pelo festim.