Está ali ao lado, na barra de vídeo: Geraldo Vandré cantando Aroeira. É um momento único; quem conhece a letra de Aroeira sabe o que quero dizer: a gravação de 1967 - a ditadura aprofundava cada vez mais suas garras tentaculares sobre o poder e sobre o povo - e ele vai cantar Aroeira no festival da Record! Transcrevo a letra:
Vim de longe, vou mais longe
quem tem fé vai me esperar
escrevendo numa conta
pra junto a gente cobrar
pro dia que já vem vindo (bis)
que esse mundo vai virar
Noite e dia vem de longe
branco e preto a trabalhar
e o dono senhor de tudo
sentado mandando dar
e a gente fazendo conta
pro dia que vai chegar
a gente fazendo conta
pro dia que vai chegar
marinheiro, marinheiro
quero ver você no mar
eu também sou marinheiro
eu também sei governar
madeira de dar em doido
vai descer até quebrar:
é a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar
Nunca fui fã da arte dita engajada, porque na maior parte das vezes ela vira uma arte subordinada a poderes e interesses e se a arte realmente quiser contribuir com a liberdade ela também tem que ser livre; porém, confesso que essa música sempre me fascinou, pelo seu ritmo, pela sua força. Eu a escutava quando era criança e não entendia bulhufas do que ele estava falando, mas mesmo assim a música exercia um fascínio enorme.
Ainda gosto dela, mas tenho sempre minhas reservas quanto à arte engajada. Breton já nos alertara, há muito tempo, sobre os riscos de submeter a arte a ditames programáticos e políticos, porque na realidade o poder da arte, sua veia transgressora, está em fundir a subjetividade do artista com o mundo objetivo, e assim romper a mecanicidade estabelecida pela lógica e pelas instituições, sem precisar direcioná-la a um objetivo político específico. Claro que há também possibilidades que na arte engajada aconteça grandes obras - Brecht e Maiakovski estão aí como prova. Mas se formos comparar, será que não é, visto de hoje, depois de tudo que aconteceu, será que não fica claro que a melhor parte da obra de Maiakovski é sua lírica e que, de alguma maneira, a poesia de Mandelstan ou mesmo de Pasternak não parecem hoje mais políticas, pelo seu significado frente ao estado totalitário de Stalin ? E mesmo Brecht não nos soa um tanto hipócrita, com seu silêncio consentido sobre os crimes de Stalin ?
Ora, Benjamin Peret era terrivelmente revolucionário e nunca escreveu uma poesia programática ou política; em compensação, o grande Paul Eluard alugou sua pena para os filhos de Stalin...
Mas mesmo assim gosto de Aroeira; e ela parece mais forte quando olhamos os tristes dias de hoje, onde a massa anônima parece se contentar com a miséria ou então não sabe como gritar, não sabe como cantar; ela nos parece mais forte, quando vemos a elite sentada em seus castelos de areia sugando a natureza e os homens, esperando o fim da história. Então, aroeira neles!
um espaço para discutir as utopias, desfazer quimeras e imaginar alternativas concretas de pensar um outro mundo não capitalista
25 agosto 2007
19 agosto 2007
O Messianismo Político
A política deveria ser a arte do concreto; não quero reduzir a política, ao dizer isto, a uma dimensão empírica, vazia, sem ideais; longe de mim querer esvaziar uma atividade humana que hoje por si só já carece de substância. O que quero dizer é que ela deveria se aplicar a construir possibilidades tangíveis de administrar o caos - ou seja - dar conta da multidiversidade humana, sem suprimir as diferenças que fazem parte do jogo dialético da existência.
Mas a tarefa política deveria ser uma tarefa de todos e não de políticos profissionais; se houvessem canais efetivos para a participação política dos cidadãos e se estes efetivamente participassem das decisões que afetam o conjunto da sociedade, seria diferente o nosso panorama político e social- onde maior a participação dos cidadãos nas decisões menor a espera por messias redentores, por agentes milagrosos que nos tirem da inércia da história.
Segundo Nerione Cardoso, Hannah Arendt falava que na Grécia antiga o ideal político era não a democracia, mas a isonomia - igualdade de participação política -, o que pressupõe que todos tenham uma mesma voz no debate político. A democracia - o governo do demos , do muito, já seria uma dominação de um grupo sobre outro, e a esfera política já estaria assim desequilibrada. Esse ideal da isonomia nos parece hoje anacrônico ou impossível, tão viciadas são as nossas instituições, tão viciada se tornou a política burguesa em seu conjunto: as negociatas são feitas escancaradamente, os políticos já se comprometem desde antes da campanha, quando fecham acordos escusos que garantirão o dinheiro que sustentará as vultosas campanhas eleitorais, e só o mais ingênuo eleitor se vê tentado a acreditar na falácia que em que a democracia se transformou. Não há igualdade de participação: a grande maioria pobre não consegue de fato interferir no jogo político pela esfera da política institucionalizada, porque esta está viciada.
Por outro lado, próprio de um país profundamente cristão, acredita-se, e muito, em prováveis indivíduos, sujeitos exclusivos que sozinhos conseguirão redimir os outro sujeitos anônimos da história: são os messias políticos, figuras emblemáticas que sempre voltam ao palco da democracia, fazendo coro ora com um ora com outro grupo, de acordo com os interesses, de acordo com sua capacidade ou não de interpretar as conveniências daqueles que o promoveram, ou de ceder ou não à pressão daqueles que o cooptaram.
O dado concreto da história é que ela não é feita de indivíduos, mas de forças; alguns indivíduos até podem encarnar parte dessas forças, se e enquanto eles se mantiverem próximos ao grupos de onde elas emanam; a sociedade é um tecido construído por diferentes grupos e só a participação dos agentes desses grupos dá a dinâmica da vida social, o impulso que a transforma.
Somos tributários dos messias políticos, e mesmo partidos ditos de esquerda e mentes ditas progressivas apostam em tais figuras, às vezes sem compreenderem ao certo qual seu papel, sempre esperando que o messias seja o agente catalisador das transformações que a sociedade precisa. Foi assim em relação ao presidente Lula, que encarnou como ninguém o papel de messias, e assim foi tratado por certos grupos, numa mistura de interesses pragmáticos por cargos e poder com uma análise política ingênua.
Acho até que os indivíduos podem ser agentes de forças transformadoras, mas eles não o são sozinhos. E o presidente Lula, para efetivar quaisquer transformações sociais e políticas, teria de contar com a ação conjunta do grupo que o elegeu - a população pobre, os sem-terra, os trabalhadores -, ele teria de optar por agir por esses grupos em detrimento dos grupos do capital financeiro, dos mega investidores, dos grandes empresários; mas não foi isso que aconteceu. Por outro lado, os sindicatos, como agentes sociais, teriam de ter mobilizado os trabalhadores para que estes lutassem efetivamente por transformações mais profundas, ou melhor, por transformações sociais, já que na realidade nenhuma estrutura foi quebrada, nenhum quadro social foi realmente modificado: ainda se arrastam as cadeias que desde séculos trazemos atadas aos nossos pés: a miséria sistêmica, a exclusão social, a corrupção, o aparelhamento do estado, as oligarquias.
Isso também como decorrência dessa inércia política, dessa comodidade que é esperar pela redenção, no lugar de construí-la. Em tempos muito duros costumamos ser muito céticos. Na realidade, sabemos que o que há é um contínuo jogo de interesses, de disputas pelo poder: nessa hora poucos lembram das promessas idealistas, das esperanças de redenção. Para quebrar essa cultura do messianismo é preciso quebrar a dinâmica ideológica-cultural que a mantém, oriunda tanto da miséria como do discurso religioso; isso não se acaba da noite para o dia - até o marxismo tem um certo sabor messiânico, sua aura mística, ainda que sem deus. É necessário atingir uma profunda consciência de si que o revele como agente de si mesmo, como sujeito participante da história, como elemento responsável pela sua própria vida frente às decisões que por ventura tomar. Sem essa consciência ainda seremos vítimas de esperanças falsas e de crenças falsas - aquelas que nos dizem que somos incapazes de fazer a história e de que precisamos de algum messias que o faça por nós.
É preciso abrir os olhos.
A política deveria ser a arte do concreto; não quero reduzir a política, ao dizer isto, a uma dimensão empírica, vazia, sem ideais; longe de mim querer esvaziar uma atividade humana que hoje por si só já carece de substância. O que quero dizer é que ela deveria se aplicar a construir possibilidades tangíveis de administrar o caos - ou seja - dar conta da multidiversidade humana, sem suprimir as diferenças que fazem parte do jogo dialético da existência.
Mas a tarefa política deveria ser uma tarefa de todos e não de políticos profissionais; se houvessem canais efetivos para a participação política dos cidadãos e se estes efetivamente participassem das decisões que afetam o conjunto da sociedade, seria diferente o nosso panorama político e social- onde maior a participação dos cidadãos nas decisões menor a espera por messias redentores, por agentes milagrosos que nos tirem da inércia da história.
Segundo Nerione Cardoso, Hannah Arendt falava que na Grécia antiga o ideal político era não a democracia, mas a isonomia - igualdade de participação política -, o que pressupõe que todos tenham uma mesma voz no debate político. A democracia - o governo do demos , do muito, já seria uma dominação de um grupo sobre outro, e a esfera política já estaria assim desequilibrada. Esse ideal da isonomia nos parece hoje anacrônico ou impossível, tão viciadas são as nossas instituições, tão viciada se tornou a política burguesa em seu conjunto: as negociatas são feitas escancaradamente, os políticos já se comprometem desde antes da campanha, quando fecham acordos escusos que garantirão o dinheiro que sustentará as vultosas campanhas eleitorais, e só o mais ingênuo eleitor se vê tentado a acreditar na falácia que em que a democracia se transformou. Não há igualdade de participação: a grande maioria pobre não consegue de fato interferir no jogo político pela esfera da política institucionalizada, porque esta está viciada.
Por outro lado, próprio de um país profundamente cristão, acredita-se, e muito, em prováveis indivíduos, sujeitos exclusivos que sozinhos conseguirão redimir os outro sujeitos anônimos da história: são os messias políticos, figuras emblemáticas que sempre voltam ao palco da democracia, fazendo coro ora com um ora com outro grupo, de acordo com os interesses, de acordo com sua capacidade ou não de interpretar as conveniências daqueles que o promoveram, ou de ceder ou não à pressão daqueles que o cooptaram.
O dado concreto da história é que ela não é feita de indivíduos, mas de forças; alguns indivíduos até podem encarnar parte dessas forças, se e enquanto eles se mantiverem próximos ao grupos de onde elas emanam; a sociedade é um tecido construído por diferentes grupos e só a participação dos agentes desses grupos dá a dinâmica da vida social, o impulso que a transforma.
Somos tributários dos messias políticos, e mesmo partidos ditos de esquerda e mentes ditas progressivas apostam em tais figuras, às vezes sem compreenderem ao certo qual seu papel, sempre esperando que o messias seja o agente catalisador das transformações que a sociedade precisa. Foi assim em relação ao presidente Lula, que encarnou como ninguém o papel de messias, e assim foi tratado por certos grupos, numa mistura de interesses pragmáticos por cargos e poder com uma análise política ingênua.
Acho até que os indivíduos podem ser agentes de forças transformadoras, mas eles não o são sozinhos. E o presidente Lula, para efetivar quaisquer transformações sociais e políticas, teria de contar com a ação conjunta do grupo que o elegeu - a população pobre, os sem-terra, os trabalhadores -, ele teria de optar por agir por esses grupos em detrimento dos grupos do capital financeiro, dos mega investidores, dos grandes empresários; mas não foi isso que aconteceu. Por outro lado, os sindicatos, como agentes sociais, teriam de ter mobilizado os trabalhadores para que estes lutassem efetivamente por transformações mais profundas, ou melhor, por transformações sociais, já que na realidade nenhuma estrutura foi quebrada, nenhum quadro social foi realmente modificado: ainda se arrastam as cadeias que desde séculos trazemos atadas aos nossos pés: a miséria sistêmica, a exclusão social, a corrupção, o aparelhamento do estado, as oligarquias.
Isso também como decorrência dessa inércia política, dessa comodidade que é esperar pela redenção, no lugar de construí-la. Em tempos muito duros costumamos ser muito céticos. Na realidade, sabemos que o que há é um contínuo jogo de interesses, de disputas pelo poder: nessa hora poucos lembram das promessas idealistas, das esperanças de redenção. Para quebrar essa cultura do messianismo é preciso quebrar a dinâmica ideológica-cultural que a mantém, oriunda tanto da miséria como do discurso religioso; isso não se acaba da noite para o dia - até o marxismo tem um certo sabor messiânico, sua aura mística, ainda que sem deus. É necessário atingir uma profunda consciência de si que o revele como agente de si mesmo, como sujeito participante da história, como elemento responsável pela sua própria vida frente às decisões que por ventura tomar. Sem essa consciência ainda seremos vítimas de esperanças falsas e de crenças falsas - aquelas que nos dizem que somos incapazes de fazer a história e de que precisamos de algum messias que o faça por nós.
É preciso abrir os olhos.
15 agosto 2007
Adeus utopia?
Adeus Utopia ?
A utopia é o não lugar, se seguirmos a etimologia latina da palavra; na fábula de Thomaz Morus, A Utopia, ela é uma ilha onde se construiu aquilo que parece ser um estado ideal, um estado que governa pouco porque seus habitantes têm autocontrole, porque suas leis são justas, porque, em síntese, o homem conseguiu criar um outro modelo de civilização.
Mas acontece que, na fábula do Thomas Morus, a representação de Utopia como uma ilha levanta diversos problemas, no plano da simbólica e sua interpretação. O estado ideal é um não lugar (u=não, topos=lugar), uma ilha, dando-nos a entender que a utopia é justamente isso: uma miragem, um lugar que não existe. O texto de Morus despertou, ao longo dos séculos, diferentes reações: ele não é o primeiro a imaginar sociedades ideais - Platão já tinha imaginado sua República, Bacon imaginará sua Nova Atlântida, Campanella sua Cidade do Sol -, mas é Morus quem cunhará, indiretamente, a palavra que será a origem dos pensamentos acerca de sociedades ideais ou estados ideais, as utopias que tanto têm instigado os homens.
Longe de mim falar contra as utopias, contra o pensamento que tem esperanças de uma vida diferente e nova sobre a terra, num mundo melhor, mais humano, mais justo. O problema é quando a idéia fica somente no plano das idéias, quando faltam elementos concretos para relacioná-la com a realidade: aí realmente ficamos no meramente utópico, utópico aqui revestido de conotações negativas, de quimeras construídas sem nenhum amparo na realidade.
A primeira pergunta que fazemos é: mas o que é a realidade ? Quem pode definir o conjunto de seres e situações que se desenvolvem num dado tempo-espaço em contínuas e múltiplas interações ? Quem pode dizer o que é tangível como realidade imediata ?
Os ideólogos do capitalismo sempre foram enfáticos ao desqualificarem o pensamento utópico, sempre com o argumento - travestido de certeza absoluta sob roupagem técnica - de que o capitalismo é uma conseqüência natural, uma etapa necessária e última na trajetória da libertação do homem em relação a natureza; e aí é que é mais que necessário criar, na vertente do pensamento utópico, mas não como utopias, alternativas concretas ao capitalismo, dentro da mais que complexa visão histórica que temos adquirido.
Os dados da realidade são complexos, mas há elementos que não precisam de elucidação e que estão à vista de todos: o planeta caminha para um total esgotamento, a ciência dominada pelo capital ameaça mesmo até o conceito de vida, com suas perigosas experiências no campo da genética, a miséria cresce e não há nenhuma perspectiva de solução pelas vias capitalistas, ao contrário; se depender dos senhores do capital, a perspectiva da escravidão ou da semi-escravidão nunca é totalmente descartada, haja vista o que empresas como a Nike ou Rebook fazem nas terras orientais; ao mesmo tempo, os grupos da sociedade civil, como os sem-terra, tentam encontrar saídas, criar alternativas, que cada vez parecem mais longínquas.
No Brasil de hoje, o movimento sindical, que foi durante um bom tempo a vanguarda dos movimentos sociais, está praticamente engessado, engolfado pela burocracia e pela falta de democracia: muitos sindicatos se assemelham a empresas - não só no sentido de procurarem uma administração racional- mas de incorporarem a sua visão de mundo valores da práxis capitalista, espelhando de certa forma a democracia burguesa que, convenhamos, não é democracia. Os trabalhadores se sentem perdidos, em meio ao mar do desemprego e da exploração e os sindicatos não conseguem coordenar uma resposta à opressão. Os sindicatos deixaram de ser espaços da utopia.
É preciso então, dar adeus a utopia e acreditar no pensamento utópico: isso não é um paradoxo; o que quero dizer é que é preciso procurar construir alternativas concretas ao capitalismo, não acreditar que o estado burguês neo-liberal é a última etapa da história, ao mesmo tempo que desprezar tudo o que seja quimérico ou dogmático. A história é dinâmica; o capitalismo é só uma etapa da história e, diga-se de passagem, uma etapa recente. Civilizações antigas que nunca conheceram o dinheiro e às quais não se pode aplicar o critério clássico de classes tiveram um alto padrão de vida e civilizações futuras também poderão construir, sobre as estruturas desenvolvidas pelo capitalismo, uma nova sociedade onde a vida do homem não esteja separada da vida do planeta e onde o homem não seja inimigo de si mesmo.
Thomas Morus criou uma obra que é um enigma; não vou interpretá-la porque não tenho instrumentos para desvendar sua carga simbólica, sua cabala, sua gematria; mas soube como ninguém instigar os homens a vislumbrarem uma paisagem ideal, com a esperança de sempre transformarem-na em real.
Adeus, utopia...
A utopia é o não lugar, se seguirmos a etimologia latina da palavra; na fábula de Thomaz Morus, A Utopia, ela é uma ilha onde se construiu aquilo que parece ser um estado ideal, um estado que governa pouco porque seus habitantes têm autocontrole, porque suas leis são justas, porque, em síntese, o homem conseguiu criar um outro modelo de civilização.
Mas acontece que, na fábula do Thomas Morus, a representação de Utopia como uma ilha levanta diversos problemas, no plano da simbólica e sua interpretação. O estado ideal é um não lugar (u=não, topos=lugar), uma ilha, dando-nos a entender que a utopia é justamente isso: uma miragem, um lugar que não existe. O texto de Morus despertou, ao longo dos séculos, diferentes reações: ele não é o primeiro a imaginar sociedades ideais - Platão já tinha imaginado sua República, Bacon imaginará sua Nova Atlântida, Campanella sua Cidade do Sol -, mas é Morus quem cunhará, indiretamente, a palavra que será a origem dos pensamentos acerca de sociedades ideais ou estados ideais, as utopias que tanto têm instigado os homens.
Longe de mim falar contra as utopias, contra o pensamento que tem esperanças de uma vida diferente e nova sobre a terra, num mundo melhor, mais humano, mais justo. O problema é quando a idéia fica somente no plano das idéias, quando faltam elementos concretos para relacioná-la com a realidade: aí realmente ficamos no meramente utópico, utópico aqui revestido de conotações negativas, de quimeras construídas sem nenhum amparo na realidade.
A primeira pergunta que fazemos é: mas o que é a realidade ? Quem pode definir o conjunto de seres e situações que se desenvolvem num dado tempo-espaço em contínuas e múltiplas interações ? Quem pode dizer o que é tangível como realidade imediata ?
Os ideólogos do capitalismo sempre foram enfáticos ao desqualificarem o pensamento utópico, sempre com o argumento - travestido de certeza absoluta sob roupagem técnica - de que o capitalismo é uma conseqüência natural, uma etapa necessária e última na trajetória da libertação do homem em relação a natureza; e aí é que é mais que necessário criar, na vertente do pensamento utópico, mas não como utopias, alternativas concretas ao capitalismo, dentro da mais que complexa visão histórica que temos adquirido.
Os dados da realidade são complexos, mas há elementos que não precisam de elucidação e que estão à vista de todos: o planeta caminha para um total esgotamento, a ciência dominada pelo capital ameaça mesmo até o conceito de vida, com suas perigosas experiências no campo da genética, a miséria cresce e não há nenhuma perspectiva de solução pelas vias capitalistas, ao contrário; se depender dos senhores do capital, a perspectiva da escravidão ou da semi-escravidão nunca é totalmente descartada, haja vista o que empresas como a Nike ou Rebook fazem nas terras orientais; ao mesmo tempo, os grupos da sociedade civil, como os sem-terra, tentam encontrar saídas, criar alternativas, que cada vez parecem mais longínquas.
No Brasil de hoje, o movimento sindical, que foi durante um bom tempo a vanguarda dos movimentos sociais, está praticamente engessado, engolfado pela burocracia e pela falta de democracia: muitos sindicatos se assemelham a empresas - não só no sentido de procurarem uma administração racional- mas de incorporarem a sua visão de mundo valores da práxis capitalista, espelhando de certa forma a democracia burguesa que, convenhamos, não é democracia. Os trabalhadores se sentem perdidos, em meio ao mar do desemprego e da exploração e os sindicatos não conseguem coordenar uma resposta à opressão. Os sindicatos deixaram de ser espaços da utopia.
É preciso então, dar adeus a utopia e acreditar no pensamento utópico: isso não é um paradoxo; o que quero dizer é que é preciso procurar construir alternativas concretas ao capitalismo, não acreditar que o estado burguês neo-liberal é a última etapa da história, ao mesmo tempo que desprezar tudo o que seja quimérico ou dogmático. A história é dinâmica; o capitalismo é só uma etapa da história e, diga-se de passagem, uma etapa recente. Civilizações antigas que nunca conheceram o dinheiro e às quais não se pode aplicar o critério clássico de classes tiveram um alto padrão de vida e civilizações futuras também poderão construir, sobre as estruturas desenvolvidas pelo capitalismo, uma nova sociedade onde a vida do homem não esteja separada da vida do planeta e onde o homem não seja inimigo de si mesmo.
Thomas Morus criou uma obra que é um enigma; não vou interpretá-la porque não tenho instrumentos para desvendar sua carga simbólica, sua cabala, sua gematria; mas soube como ninguém instigar os homens a vislumbrarem uma paisagem ideal, com a esperança de sempre transformarem-na em real.
Adeus, utopia...
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