19 agosto 2007

O Messianismo Político

A política deveria ser a arte do concreto; não quero reduzir a política, ao dizer isto, a uma dimensão empírica, vazia, sem ideais; longe de mim querer esvaziar uma atividade humana que hoje por si só já carece de substância. O que quero dizer é que ela deveria se aplicar a construir possibilidades tangíveis de administrar o caos - ou seja - dar conta da multidiversidade humana, sem suprimir as diferenças que fazem parte do jogo dialético da existência.
Mas a tarefa política deveria ser uma tarefa de todos e não de políticos profissionais; se houvessem canais efetivos para a participação política dos cidadãos e se estes efetivamente participassem das decisões que afetam o conjunto da sociedade, seria diferente o nosso panorama político e social- onde maior a participação dos cidadãos nas decisões menor a espera por messias redentores, por agentes milagrosos que nos tirem da inércia da história.
Segundo Nerione Cardoso, Hannah Arendt falava que na Grécia antiga o ideal político era não a democracia, mas a isonomia - igualdade de participação política -, o que pressupõe que todos tenham uma mesma voz no debate político. A democracia - o governo do demos , do muito, já seria uma dominação de um grupo sobre outro, e a esfera política já estaria assim desequilibrada. Esse ideal da isonomia nos parece hoje anacrônico ou impossível, tão viciadas são as nossas instituições, tão viciada se tornou a política burguesa em seu conjunto: as negociatas são feitas escancaradamente, os políticos já se comprometem desde antes da campanha, quando fecham acordos escusos que garantirão o dinheiro que sustentará as vultosas campanhas eleitorais, e só o mais ingênuo eleitor se vê tentado a acreditar na falácia que em que a democracia se transformou. Não há igualdade de participação: a grande maioria pobre não consegue de fato interferir no jogo político pela esfera da política institucionalizada, porque esta está viciada.
Por outro lado, próprio de um país profundamente cristão, acredita-se, e muito, em prováveis indivíduos, sujeitos exclusivos que sozinhos conseguirão redimir os outro sujeitos anônimos da história: são os messias políticos, figuras emblemáticas que sempre voltam ao palco da democracia, fazendo coro ora com um ora com outro grupo, de acordo com os interesses, de acordo com sua capacidade ou não de interpretar as conveniências daqueles que o promoveram, ou de ceder ou não à pressão daqueles que o cooptaram.
O dado concreto da história é que ela não é feita de indivíduos, mas de forças; alguns indivíduos até podem encarnar parte dessas forças, se e enquanto eles se mantiverem próximos ao grupos de onde elas emanam; a sociedade é um tecido construído por diferentes grupos e só a participação dos agentes desses grupos dá a dinâmica da vida social, o impulso que a transforma.
Somos tributários dos messias políticos, e mesmo partidos ditos de esquerda e mentes ditas progressivas apostam em tais figuras, às vezes sem compreenderem ao certo qual seu papel, sempre esperando que o messias seja o agente catalisador das transformações que a sociedade precisa. Foi assim em relação ao presidente Lula, que encarnou como ninguém o papel de messias, e assim foi tratado por certos grupos, numa mistura de interesses pragmáticos por cargos e poder com uma análise política ingênua.
Acho até que os indivíduos podem ser agentes de forças transformadoras, mas eles não o são sozinhos. E o presidente Lula, para efetivar quaisquer transformações sociais e políticas, teria de contar com a ação conjunta do grupo que o elegeu - a população pobre, os sem-terra, os trabalhadores -, ele teria de optar por agir por esses grupos em detrimento dos grupos do capital financeiro, dos mega investidores, dos grandes empresários; mas não foi isso que aconteceu. Por outro lado, os sindicatos, como agentes sociais, teriam de ter mobilizado os trabalhadores para que estes lutassem efetivamente por transformações mais profundas, ou melhor, por transformações sociais, já que na realidade nenhuma estrutura foi quebrada, nenhum quadro social foi realmente modificado: ainda se arrastam as cadeias que desde séculos trazemos atadas aos nossos pés: a miséria sistêmica, a exclusão social, a corrupção, o aparelhamento do estado, as oligarquias.
Isso também como decorrência dessa inércia política, dessa comodidade que é esperar pela redenção, no lugar de construí-la. Em tempos muito duros costumamos ser muito céticos. Na realidade, sabemos que o que há é um contínuo jogo de interesses, de disputas pelo poder: nessa hora poucos lembram das promessas idealistas, das esperanças de redenção. Para quebrar essa cultura do messianismo é preciso quebrar a dinâmica ideológica-cultural que a mantém, oriunda tanto da miséria como do discurso religioso; isso não se acaba da noite para o dia - até o marxismo tem um certo sabor messiânico, sua aura mística, ainda que sem deus. É necessário atingir uma profunda consciência de si que o revele como agente de si mesmo, como sujeito participante da história, como elemento responsável pela sua própria vida frente às decisões que por ventura tomar. Sem essa consciência ainda seremos vítimas de esperanças falsas e de crenças falsas - aquelas que nos dizem que somos incapazes de fazer a história e de que precisamos de algum messias que o faça por nós.
É preciso abrir os olhos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Meu caro amigo Gledson, verdadeiramente suas palavras são de uma lucidez assutadora, porem infelizmente não temos dentro dos movimentos sindicais e muito pouco dentro de outros movimentos sociais, cabeças pensantes embuidas de lucidez, talvez por isso nos falta aquele comprometimento que você cita em seu texto, estamos cercados por grupos e oligarquias mediocres e quando pensantes, profundamente individualistas, é difícil enxergar um horizonte iluminado nos fim do túnel.
espero uma visita sua ao meu blog também, abraços !