14 janeiro 2009

O Cinismo em Ação

Uma guerra, qualquer guerra, é uma coisa suja; não há nada que possa ser considerado belo ou agradável, seja do ponto de vista estético ou ético, em uma guerra. Mas creio que o que de pior há é a retórica dos vencedores e invasores, que procuram justificar seus crimes atrás de uma verborragia cínica, que cobre com um verniz hipócrita as cores sombrias da guerra.
O ataque de Israel na Faixa de Gaza já foi condenado pela ONU, que qualificou a ação de Israel como passível de punição como crime de guerra; agora vem a Primeira Ministra de Israel e tem o cinismo de falar que "essa guerra fará bem ao povo palestino, porque acabará com os extremistas do Hammas"?
É possível cinismo maior que esse, falar para um povo que está sendo massacrado, povo este que já perdeu mais de 200 crianças assassinadas pelo exército de Israel, é possível falar que isso é um bem ?
É uma medida de cinismo que não é possível tolerar. Enquanto a Palestina chora seus mortos, Israel conta os ataques do Hammas que quase deram certo. E não contentes em destruir casas, se apropriar de poços de água, matar crianças e velhos, Israel ainda destruiu um dos poucos cemitérios locais; ou seja, os palestinos da Faixa de Gaza não podem nem enterrar seus mortos...
Há uma intencionalidade macabra nesse gesto; é como, para um egípcio antigo, a violação da múmia, pela implicações que esse gesto traria para a alma do morto. O ato de enterrar os mortos tem uma significação especial no contexto religioso, no âmbito da cultura árabe e principalmente na significação que esse ato se reveste para as famílias e sua memória coletiva.
Destruir um cemitério é tentar tirar a significação da morte como evento coletivo, além de fazer com que os mortos se acumulem na cidade; ou seja, os palestinos, que já não podiam cuidar dos vivos agora não conseguirão cuidar dos mortos: sem água, sem energia, com os hospitais operando já além do limite, sem alimento, sem um cemitério... o que mais os israelenses vão tirar do povo palestino ? O ar que eles respiram ?
Cara Sra. Tzipi Livni, o povo palestino não agradecerá por essa guerra; o sangue que suja o solo palestino não é bom adubo nem fertilizante: ele espalha em ondas um ódio que se acumula com o tempo e que sempre cresce, porque permanecem as razões que o justificam.
Se há alguma significação na história - é difícil falar sobre o presente, porque estamos dentro dele -, se a história é prenhe de sentidos que não conseguimos ver no presente, o sentido possível dessa tragédia coletiva vivida pelo povo palestino é o de que a ordem neoliberal do mundo falhou completamente e que não é mais possível tolerar a falácia de sua diplomacia de fachada.
Será preciso que se encontre um novo horizonte civilizatório, outra perspectiva onde os povos se respeitem na justa medida; o capitalismo macula as relações, sejam entre pessoas ou entre povos; é preciso que se conceba outra escala de valores humanos onde o humano prevaleça; esse não é um ideal utópico, mas uma necessidade maior do nosso presente, onde a natureza se esgota por conta da agressão do capital, onde os homens se matam em guerras patrocinadas pelos interesses do capital, onde a beleza se esvai ou se silencia, calada pela brutalidade do capital.
Mas não dá para aceitar esse cinismo de tempos de guerra; massacre é massacre, morte é morte, sangue é sangue, destruição é destruição: não existe morte relativa, não existe meio sangue, não existe meio massacre - as palavras designam aquilo que as coisas são; só a retórica do cinismo tenta esconder e acobertar a natureza criminosa da guerra.
Mas não conseguirá.

09 janeiro 2009

Não Há Mortos Em Gaza

Não há mortos em Gaza
eles estão ausentes
nos escombros dos edifícios

eles estão calados
nos palanques, nos comícios

eles estão quietos
nas trincheiras, nos ofícios

eles não falam
nos círios acesos, nos obuses

eles não choram
corpos estraçalhados sob a mira dos canhões


não há mortos em Gaza
eles sobrevoam a horizontalidade da morte

eles nadam num mar de esperanças desfeitas

eles escorrem por um túnel profundo
rasgado numa menorah

eles cantam a sura do profeta
enquanto bebem vinho de tâmara


não há mortos em Gaza
eles percebem o silêncio que emana das tvs

eles recebem as flores da utopia

eles esperam pelo sol da Palestina

eles dançam com anjos e huris no paraíso

eles cavalgam em corcéis e tempestades

eles cantam com vozes de crianças


não há mortos em Gaza
não há mortos em Gaza

mortos estamos todos nós.

26 julho 2008

Dois Pesos, Nenhuma Medida: A justiça brasileira, Cacciola, Daniel Dantas e o MST

Essa semana, trabalhadores do Movimento Sem Terra que chegavam à Porto Alegre foram revistados e fotografados pela polícia antes de entrarem na cidade, numa atitude de clara perseguição por parte dos poderes constituídos do estado do Rio Grande do Sul. A recepção que os sem-terra tiveram foi a de serem tratados como criminosos prontos a cometerem algum ato de vandalismo ou algo pior, quando se sabia por antecipação qual era o objeto da caminhada: manifestações pacíficas no centro de Porto Alegre.
A ação da Polícia Militar gaúcha faz parte de uma ação articulada entre o governo estadual e o ministério público daquele estado, e que visa criminalizar o MST, num gesto próprio de governos ditatoriais.
Mas esse gesto revela mais que isso, revela como o judiciário brasileiro precisa, urgentemente, de uma reforma radical, pois ele está desmoralizado, haja vista as ações que vem tomando e que revelam que a justiça brasileira possui dois pesos e nenhuma medida: há uma justiça para os ricos e outra para os pobres e trabalhadores.
A justiça para os ricos liberta escroques e ladrões, como Cacciola e Daniel Dantas, sobre os quais pairam sem número de acusações dos negócios mais escusos, em valores sempre na escala dos milhões. A justiça para os pobres é rigorosa: prende ladrões de shampoo e caixas de margarina sem julgamento, confina presos pobres em cubículos onde nem animais sobreviveriam e posa de honesta.
O que está em choque é o próprio Estado. Quando a justiça é desmoralizada, rompe-se a teia que une os diversos elementos de uma sociedade, pois a justiça teria que pairar acima das relações de classe e dos interesses que as dominam, mas não é assim, porque o próprio estado revela sua face unilateral, burguesa, quando acoberta as ações do judiciário, os crimes de colarinho branco, a ilegalidade que permeia grande parte das ações das corporações, dos grandes financistas, enfim, da burguesia como um todo.
Não sei se as pessoas perceberam a conexão entre esses extremos, a libertação dos escroques e a perseguição ao MST, mas há uma linha dupla que une esses atos extremos, a proteção à burguesia e a perseguição aos movimentos sociais: faz parte da ação articulada pela burguesia, desestruturar os movimentos sociais e ao mesmo tempo proteger-se enquanto classe, mesmo que isso signifique dar cobertura para negócios escusos e crimes diversos. Há alguém que ainda se iluda quanto a achar que os grandes negócios são feitos de mãos limpas ? Que por trás das grandes corporações não há também grandes crimes, dos ecológicos aos financeiros, da corrupção aos assassinatos ? Há ainda pessoas ingênuas a esse ponto, de não perceberem que a corrupção é inerente ao próprio capitalismo, é inerente e subjacente à sua ideologia, ao seu discurso de lucro a qualquer custo ?
A justiça, num país que nunca conseguiu constituir-se como uma república de fato, só pode ser unilateral: aqui as aspirações burguesas morreram antes de seus discursos, a realidade sempre foi muito fácil para essa burguesia que sempre se locupletou em banquetes sem fim, com um estado sempre pronto a desmantelar revoltas e aplicar uma justiça sempre classista: a favor da burguesia e contra aqueles que estavam do outro lado: trabalhadores, índios, pobres, camponeses.
Quando a Prússia invadiu a França em 1870, os operários que haviam tomado Paris e ali erguido a famosa COMUNA DE PARIS, fizeram a defesa da cidade contra o invasor estrangeiro; o governo burguês preferiu fazer uma aliança com o invasor estrangeiro e massacrar os operários rebelados do que concentrar forças para expulsar o invasor. Essa é uma lição da história: não há justiça burguesa, há sempre a injustiça burguesa, porque os pratos da sua balança têm pesos diferentes, ou melhor, só há um prato na balança...
É preciso consciência histórica e consciência de classe para compreender as ações da justiça brasileira, e mais que isso, é preciso consciência de classe para resistir à brutalidade desses tempos de silêncio, onde parece que tudo morreu, inclusive a esperança...
e Viva o MST!!!

17 abril 2008

Fora China!

Nenhum crime é tão pouco condenado quanto a invasão chinesa ao Tibete e a sistemática tentativa de destruir a cultura tibetana, numa clara ação de etnocídio, perante a qual o mundo se cala, de uma ou outra maneira.
País que se autodenomina comunista, mas que na verdade amplia cada vez mais sua práxis capitalista aliada a um estado altamente repressivo, a China tem cometido todo tipo de violação aos direitos humanos: desrespeito à pessoa, desrespeito às culturas, práticas de tortura, lavagem cerebral, prisão de crianças (como a do Panchen Lama, que tem 8 anos), mas movidos por interesses escusos, os países se calam, assim como tem se calado a diplomacia brasileira e de vários outros países, assim como tem se calado mesmo as organizações de esquerda - não vi nenhuma manifestação do PSTU, do PSOL ou de qualquer outro partido de esquerda; no site do PC do B ainda há notícias absurdas, e ainda têm a coragem de dizer que o Tibete, como região autonôma, tem sua cultura e língua respeitadas ( no site http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=34670 ), numa matéria tão parcial que sugiro aos senhores do PC do B que leiam o site da comissão internacional de juristas, organização que acompanha a história recente do Tibete desde a sua invasão pela China nos anos 50.
Esse silêncio incomoda, porque a esquerda se mostra totalmente parcial, inócua, bidimensional mesmo, porque incapaz de articular uma defesa da vida acima das ideologias, em nome de direitos que são essenciais(respeito à vida, às culturas, à soberania dos povos), se mostra incapaz de olhar acima de seus umbigos estreitos, além de sua retórica chula de uma luta de classes extemporânea (não que o conceito de luta de classes seja extemporâneo, mas aquilo que a esquerda tem considerado como tal), que não corresponde à verdade histórica, que não corresponde nem à dialética real.
Porque o fato é que não é de agora que a China mata e tortura no Tibete, enquanto a esquerda se cala, e os governos também. Incômodo o silêncio do governo brasileiro: quando os direitos são esquecidos em nome de relações comerciais ou seja lá do que for, tudo pode acontecer: é a barbárie travestida de civilização, como diria Walter Benjamin.
Onde fica o direito à autodeterminação dos povos ? Só um ignorante em matéria de cultura pode achar que o Tibete pertence à China: a China invadiu o Tibete como qualquer nação imperialista o faria, mas o fato é que a autonomia tibetana, sua independência como povo e cultura ficam mais que evidentes pela existência de uma língua própria, de um alfabeto próprio, que nem é derivado da escrita chinesa, mas sim do sânscrito. O litígio quanto à demarcação das fronteiras aconteceu por conta do próprio estado tibetano, durante séculos fechado ao contato externo, assim como foi o estado japonês até meados do século XIX; a diferença é que o estado japonês era per si centralizado em torno de uma forte cultura confucionista, marcado pela disciplina e pelo culto abstrato ao céu e à nação, enquanto a cultura tibetana, budista, sempre foi marcada por uma evidente indiferença quanto ao mundo terreno.
Mas são idiossincrasias que teriam de ser respeitadas, assim como têm de ser respeitadas as culturas indígenas ou toda e qualquer cultura diferente das culturas clássicas, sejam do ocidente ou do oriente. Ainda assim, para a comissão internacional de juristas, o estatuto do Tibete como país autônomo na época da invasão chinesa é inquestionável.
Querem tirar mesmo dos tibetanos o direito à revolta, criticando-os por terem agido com violência contra a polícia chinesa, o que chega a ser de um cinismo gritante - a esquerda se rejubila quando iraquianos ou afegãos reagem ao invasor norte-americano e se cala frente ao invasor chinês: ora, fora com todos os invasores, de todos os países invadidos, seja ele o invasor norte-americano, chinês, europeu, brasileiro ou seja lá o que for. Que se respeite o direito de auto-determinação dos povos, que a China conceda a autonomia de fato e não uma autonomia de fachada, mas que garanta o direito do povo tibetano de escolher seu próprio destino.
Quanto ao governo brasileiro, fica mais essa decepção: tirando uma pequena nota onde o governo brasileiro "deplora" os acontecimentos no Tibete, mas reconhece a "unidade territorial chinesa", ficou um absoluto e comprometido silêncio, enquanto a comunidade internacional grita contra os crimes chineses. Depois dos transgênicos (em particular a soja), depois da devastação da floresta amazônica, a diplomacia silenciosa, que lembra do comércio e esquece dos direitos.
"Eu não como desse pão", vamos boicotar as olimpíadas e exigir que a China cesse com toda violência e comece a retirar suas tropas do Tibete; por um Tibete livre. Já.

29 janeiro 2008

A Esperança

Não vou falar da esperança como se faz nos velhos receituários moralistas ou nas canções de gosto duvidoso. Gostaria de torná-la matéria nobre, sem a imagem sobrecarregada de cansaço e de vãs ilusões, que faz com que a esperança seja confundida com toda e qualquer forma de messianismo.
Os gregos não gostavam da esperança; para eles, acreditar que algo ia acontecer era uma forma de paranóia, ou seja, pensamento paralelo, defeituoso – no dizer de James Hilman -, porque não faz sentido esperar por esperar.
É difícil pensar a esperança, ainda mais numa época tão vazia de perspectivas, e de uma racionalidade tão vaga e utilitária. Nos desacostumamos a pensar valores abstratos, tão alto a lógica do lucro, dos valores utilitários, fala dentro de nós. Mas são valores abstratos – concretos no plano psíquico -, que dão a tônica da vida humana, aliás, é isso que a torna humana.
Então, é preciso pensar a esperança, para que não cedamos à lógica fácil e comodista dos senhores do capital. Mas pensar a esperança como se pensássemos com a mãos e como se as mãos carregassem nossos corações.
É que a esperança é fruto e colheita, e temos de cultivá-la, preservá-la, aconteça o que acontecer, venha o que vier, com o trabalho de nossas mãos, sabendo que o dia seguinte só irá existir se o construirmos.
Vozes apressadas, maldosas, anunciam a morte da esperança. Como se a esperança estivesse presa na bandeira de um partido, num nome que se grita, num santo que se acredita. Essas vozes esperam que nada mude, porque a eles não interessa a mudança. São as vozes dos banqueiros, da velha e decrépita elite que, incapaz de aceitar as mudanças históricas, apressam-se em fazer coro com os funerais da morte da esperança. São as vozes dos ressentidos, dos que veladamente odeiam tudo o que cheire a liberdade, revolução, mudança. São os ex-senhores de engenho, capitães do mato reformados, falsos líderes e toda classe média que anda sempre à procura de um espelho.
Nesses dias de intensa crise política, as esperanças foram sufocadas, a esperança foi amordaçada. Porque o coro dos contrários da elite ressentida, dos hipócritas políticos – do PT inclusive -, da imprensa prostituída, quer nos fazer crer que o fracasso do governo do PT e do próprio PT é o fracasso de um projeto histórico de mudanças profundas, justamente ansiadas, durante tempos e tempos, pelo grosso da população.
Não, senhores. Lamento informar, mas a esperança passa bem, obrigado. Porque a esperança não é uma bandeira, um nome no dicionário, uma necessidade psicológica de preencher um vazio existencial: a esperança é nossa capacidade de construirmos um futuro, mão à mão, palmo a palmo. Não precisamos de governo nem de senhores que nos dêem esperança, não precisamos de palanques nem de templos: a esperança brota do fundo de nós, como planta luminosa que cresce devagar. E pedra por pedra a ergueremos, quer faça sol ou não.

26 dezembro 2007

Adeus Ano Velho, Feliz Revolução Nova



Que o próximo ano
traga esperanças revolucionárias e que sejamos capazes de pensarmos e construirmos um mundo melhor. Que a poesia, a filosofia, a arte e a revolução - do espírito e da matéria - andem de mãos dadas na tarefa, dura, mas necessária, de erguermos um novo horizonte.Até o próximo ano.








13 dezembro 2007

A Nova Luz – Uma Resposta Histórica a Um Processo em Curso

É papel do historiador não somente se debruçar sobre o passado, mas também procurar compreender o presente a partir do passado, a partir dos exemplos históricos.
Vista do ângulo da história, a intervenção urbana no bairro da luz, em São Paulo, que a prefeitura de São Paulo denominou de Nova Luz , chega a ter um nome até irônico, porque ela se configura, do ponto de vista histórico, na repetição de velhos erros urbanísticos e na perpetuação de práticas sociais que, se aparentemente limpam as áreas urbanas – limpeza essa já questionável – num curto intervalo de tempo, a longo prazo representam um aprofundamento no erro e não a solução – estamos falando da gentrification, ou gentrificação. Mas não nos antecipemos. Estamos a colocar o carro na frente dos bois.
Walter Benjamin, em sua VI tese Sobre O Conceito de História, diz : articular o passado historicamente não significa conhecê-lo “tal como ele propriamente foi”. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo. Nós estamos articulando o passado enquanto ele ainda é presente, porque esse é um instante de perigo, perigo esse que terá suas conseqüências para o futuro, principalmente quando se está a se repetir erros que já foram cometidos – intervenções urbanas que levaram a novas levas de especulação imobiliária, “higienização” do centro com deslocamento maciço de pessoas – é como tentar jogar para baixo do tapete aquilo que salta à vista e não se percebe que a história não acoberta nada, tudo vem à tona com o tempo, alguém testemunha o momento de perigo.
Porque antes mesmo de avaliar o projeto, faz-se necessário avaliar a degradação do chamado centro velho, em particular a degradação do bairro da Luz. Esse processo de degradação, de abandono, por parte do poder público, do chamado centro velho, não foi um fenômeno isolado da cidade de São Paulo, ele ocorreu de modo variado e comum em quase todas as grandes metrópoles do século XX, e há elementos muito comuns, por exemplo, com a degradação do Pelourinho, em Salvador. Segundo Paulo Ormindo
Um centro histórico desse tipo, normalmente, sofre alguns processos, como excessiva especialização, em conseqüência do aumento da demanda dos serviços, que é, por sua vez, função de seu crescimento. Por exemplo, a sua transformação num setor exclusivo de prestação de serviços – comércio,bancos, etc. - o que implica uma pressão imobiliária muito grande sobre a área. É um processo que ocorre hoje e foi responsável pela destruição de uma série de centros históricos no Brasil, como é o caso do Rio de Janeiro, de São Paulo, e de outras capitais brasileiras, e que vem ocorrendo a nível latino- americano e em outros países.
(In Arantes, 1984)
Ainda que a referência não seja do momento, pouco mudou o quadro descrito. A chamada descentralização, que mudou o foco da cidade para outros bairros – Jardins, Paulista, Morumbi - , reflete exatamente o que Ormindo descrevia pelo ano de 1984. Paulo Ormindo falava, naquele momento, do bairro do Pelourinho, em Salvador, que passou por processo semelhante na década de 80, quando começou a chamada revitalização do Pelourinho. O problema maior apontado por Ormindo foi justamente a descentralização, com a conseqüente degradação e abandono do centro velho de Salvador, sem que o poder público tomasse as medidas necessárias para deter o processo enquanto esse ainda estava em curso. O que agrava o discurso do autor, é que não foram tomadas providências, aqui em São Paulo, para evitar esse processo, e as medidas que agora são tomadas, em larga medida, reproduzem o modelo criticado.
Localizadas as razões para a degradação da região da Luz – a transferência de empresas para outros bairros por conta do abandono do poder público quanto aos serviços básicos, mais a pressão imobiliária -, fica mais fácil contextualizar o projeto hoje em curso.
A primeira característica marcante do projeto Nova Luz, foi a limpeza que foi feita; não uma limpeza das ruas – cotidiana -, mas sim a limpeza social, o afastamento de elementos considerados perigosos ou simplesmente excluídos. No próprio site da prefeitura de São Paulo há informações sobre as ações tomadas, só que em nenhum momento elas são contextualizadas. Organizações dos direitos humanos elaboraram um documento em que as violências são relatadas, o Dossiê Sobre as Violações de Direitos Humanos no Centro de São Paulo, onde é mostrado, através de reportagens, relatórios e material iconográfico, a ação extremamente violenta da polícia militar, braço armado do estado, para expulsar esses excluídos, a maior parte moradores de rua ou pessoas que ocuparam os prédios abandonados por não terem onde morar.
Essa violência injustificada, que de diversas maneiras se assemelha às ações de Hitler ao realizar as mudanças na Berlim dos anos 30, demonstra claramente a natureza excludente do projeto: não se procurou incluir a população local, os moradores de rua e os moradores dos prédios ocupados, na concepção do projeto, a transformação desejada virá à custa dessa população, o enobrecimento da área virá através de uma exclusão gradativa e persistente, uma gentrification em curso que implicará nos desdobramentos já previstos e que coincidem com os alertas dados por Paulo Ormindo nos idos de 1980, a exclusão da população pobre e a especulação imobiliária – vale lembrar, e veremos isso à frente, que o projeto Nova Luz está procurando atrair empresas para a região através de incentivos fiscais.
A ação do poder público tem sido dura e inflexível quanto à população excluída, e o que era público – o próprio espaço – vai sendo transferido do poder público para as empresas privadas – em nenhum momento o poder público cogitou dar incentivos à população pobre para que ela se estabelecesse ou ficasse na região, em nenhum momento se discutiu maneiras de viabilizar a estadia da população de baixa renda, porque não há o interesse em tal. Assim se revela a natureza excludente do projeto e, porque não dizer, visto outros antecedentes semelhantes, tal como descrito por Walter Benjamin em Rua De Mão Única, fascista em sua concepção e em sua execução. O projeto claramente busca atender a uma parcela da população: empresários que vão investir na região, uma classe média abastada que vai procurar diversão sofisticada e outra que vai procurar a região para morar, depois das transformações que o bairro vai sofrer.
O outro aspecto que merece ser meditado com muita atenção, mas que vai se revelar complementar à exclusão já iniciada, são as leis de incentivo fiscal que foram aprovadas e que apontam os rumos da ocupação que se deseja. O texto do projeto diz :
Lei de Incentivos Fiscais:
enviada em 16 de setembro à Câmara pelo prefeito José Serra, a lei estimula a instalação de empresas de tecnologia e outros serviços.(Grifo nosso) A Lei foi aprovada em 30 de novembro de 2005 e regulamentada em 14 de fevereiro deste ano; A área foi declarada de utilidade pública (6/09/2005), possibilitando sua revitalização urbanística; (Site http://centrosp.prefeitura.sp.gov.br/projetos/novaluz)

Fica claro a fica de concentração de serviços, a excessiva especialização já apontada por Ormindo quanto a outros processos, especialização esta que gerará novas demandas e novas transferências de economia de um bairro para outro, bem como a outra política, a da exclusão da população pobre, vai significar a transferência dessa população de um bairro para outro.
O chamado perímetro de incentivo fiscal tem o total de 225 km2., praticamente o dobro da chamada área de utilidade pública, que tem a área de 105km2. A área total a ser transformada dá o total de 225 hectares ou 2,25 milhões de metros quadrados.
A gentrification em curso no projeto explica, de certo modo, as intervenções anteriores: a criação da Sala São Paulo, do espaço Pinacoteca e a revitalização do Jardim da Luz, como maneiras de atrair uma população de alto poder econômico e poder de decisão, para dar suporte político ao projeto.
Não vamos discutir aqui a validade das ações policiais que foram direcionadas ao combate ao crime, ao tráfico de drogas e à marginalidade disseminada pelos recantos abandonados do bairro. O que queremos discutir e mostrar é que mesmo esse abandono, essa degradação, foi o resultado de um abandono anterior por parte do poder público, que deixou a área desprovida de manutenção básica, que não fez e nem procurou investimentos para a área, seguindo o ritmo das flutuações imobiliárias.
O principal estigma atribuído à parte do bairro, o de ser a Cracolândia, já estava posto não de agora, mas de um longo tempo, e nunca houve uma ação concentrada para resolver o problema do tráfico de drogas na região, menos ainda no tocante aos problemas da população de rua e aos menores abandonados, realidade muito mais antiga para qual o estado nunca tomou nenhuma medida eficaz. Porque os problemas relativos à marginalidade são decorrências diretas da falta de investimentos sociais, do abandono de qualquer política, por parte do estado de São Paulo, de investimentos em educação, saúde ou de amparo às populações marginalizadas, expulsas das classes, lumpenizadas pela mão cruel da dinâmica social capitalista. Márcio Pochman, no livro São Paulo: Realidade e Perspectivas – Efeitos do Liberalismo Tucano no Estado, diz que:
Nessa situação, ampliam-se barbaramente aqueles que são considerados pobres. Não sem motivos, São Paulo torna-se o maior estado de pobres do País, relativamente ao padrão de riqueza oferecida. ( Pochman, in Casaro, 2006)
Os ditames da política tucana claramente são: não se sanam os problemas sociais, mas simplesmente se expulsa a população produzida por esses problemas, limpa-se a área, para que a burguesia,a verdadeira dona do poder, o verdadeiro agente do estado, possa desfrutar da bela e tumultuada zona da Luz.
Sem dúvidas, o patrimônio material presente na região está sendo preservado: a estação da Luz, a Pinacoteca, o Jardim da Luz; mas essa preservação, qual a validade dela, se preservar implica então em excluir parte da população do usufruto do bem tombado ? Em que medida essa preservação não significa também a apropriação do público pelo privado e também uma confirmação de valores ideológicos formadores de uma identidade de classe e não uma identidade do povo ?
As cidades são os lugares privilegiados onde a vida humana se concentra e se concentrará ainda mais agora no século XXI; mas nós humanos precisaremos equacionar e resolver nossas diferenças sociais, se não quisermos transformar as cidades em canteiros férteis do caos. O espaço público que a cidade constitui terá de ser usado como tal, e não como uma arma a ser usada para beneficiar classes específicas que detenham em suas mãos o poder econômico e político. Nesse sentido, o projeto Nova Luz não é somente uma regressão do ponto de vista urbanístico; politicamente ele é claramente a explicitação da natureza de um projeto em curso – a política neoliberal vigente no país e no estado de São Paulo -, que aumenta cada vez mais o número de excluídos, de desabrigados, de marginalizados, e que essa mesma política acaba por expulsar as populações marginalizadas para um nada metafísico, para uma não existência concreta que se resume em se amparar na própria margem – marginalidade – para garantir a sobrevivência mínima. A Nova Luz é uma piada de mal gosto num momento histórico em que cada vez mais são questionados a política neoliberal e os modelos capitalistas, que levam o planeta à exaustão e às populações pobres à marginalidade.
Pelos menos nós, historiadores, num momento de perigo, temos de saber mostrar os equívocos e a hipocrisia de uma política que, em nome de um estado que se pronuncia independente, mostra sua face corrupta e corruptível, não hesitando em expulsar, violentar ou agredir a população excluída para beneficiar aqueles que Raymundo Faoro chamaria de os donos do poder.
Num momento de perigo, nós historiadores dizemos: não.


Bibliografia:
ARANTES, Antonio Augusto(org.). Produzindo O Passado, São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984
CASARO, Rita(org.). São Paulo: Realidade e Perspectivas – Efeitos do Liberalismo Tucano no Estado, São Paulo: Ed.Anita Garibaldi/ Instituto Maurício Grabois, 2006.
FARIA, Hamilton & NASCIMENTO, Maria Ercília . Desenvolvimento Cultural e Planos de Governo, São Paulo: Polis, 2000
HORTA, Maria de Lourdes Pinheiro, GRUNBERG, Evelina & MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia Básico de Educação Patrimonial, Rio de Janeiro: Museu Imperial/Iphan, 1999
LEITE, Rogério Proença de Souza. Espaço Público e Política dos Lugares – Uso do Patrimônio Cultural na Reinvenção do Recife Antigo, Campinas: Unicamp, 2001
LOWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de Incêndio – Uma Leitura das teses “Sobre O Conceito da História, São Paulo: Boitempo Editorial, 2005
SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preservação do Patrimônio Cultural em Cidades, Belo Horizonte: Autêntica, 2005
VIEIRA, Maria do Rosário da Cunha. A Pesquisa em História, São Paulo: Ática Editora, 2003 VIVO, Fórum Centro. Violações dos Direitos Humanos no Centro de São Paulo: Propostas e Reivindicações Para Políticas Públicas, São Paulo: Fórum Centro Vivo, 2007