Uma guerra, qualquer guerra, é uma coisa suja; não há nada que possa ser considerado belo ou agradável, seja do ponto de vista estético ou ético, em uma guerra. Mas creio que o que de pior há é a retórica dos vencedores e invasores, que procuram justificar seus crimes atrás de uma verborragia cínica, que cobre com um verniz hipócrita as cores sombrias da guerra.
O ataque de Israel na Faixa de Gaza já foi condenado pela ONU, que qualificou a ação de Israel como passível de punição como crime de guerra; agora vem a Primeira Ministra de Israel e tem o cinismo de falar que "essa guerra fará bem ao povo palestino, porque acabará com os extremistas do Hammas"?
É possível cinismo maior que esse, falar para um povo que está sendo massacrado, povo este que já perdeu mais de 200 crianças assassinadas pelo exército de Israel, é possível falar que isso é um bem ?
É uma medida de cinismo que não é possível tolerar. Enquanto a Palestina chora seus mortos, Israel conta os ataques do Hammas que quase deram certo. E não contentes em destruir casas, se apropriar de poços de água, matar crianças e velhos, Israel ainda destruiu um dos poucos cemitérios locais; ou seja, os palestinos da Faixa de Gaza não podem nem enterrar seus mortos...
Há uma intencionalidade macabra nesse gesto; é como, para um egípcio antigo, a violação da múmia, pela implicações que esse gesto traria para a alma do morto. O ato de enterrar os mortos tem uma significação especial no contexto religioso, no âmbito da cultura árabe e principalmente na significação que esse ato se reveste para as famílias e sua memória coletiva.
Destruir um cemitério é tentar tirar a significação da morte como evento coletivo, além de fazer com que os mortos se acumulem na cidade; ou seja, os palestinos, que já não podiam cuidar dos vivos agora não conseguirão cuidar dos mortos: sem água, sem energia, com os hospitais operando já além do limite, sem alimento, sem um cemitério... o que mais os israelenses vão tirar do povo palestino ? O ar que eles respiram ?
Cara Sra. Tzipi Livni, o povo palestino não agradecerá por essa guerra; o sangue que suja o solo palestino não é bom adubo nem fertilizante: ele espalha em ondas um ódio que se acumula com o tempo e que sempre cresce, porque permanecem as razões que o justificam.
Se há alguma significação na história - é difícil falar sobre o presente, porque estamos dentro dele -, se a história é prenhe de sentidos que não conseguimos ver no presente, o sentido possível dessa tragédia coletiva vivida pelo povo palestino é o de que a ordem neoliberal do mundo falhou completamente e que não é mais possível tolerar a falácia de sua diplomacia de fachada.
Será preciso que se encontre um novo horizonte civilizatório, outra perspectiva onde os povos se respeitem na justa medida; o capitalismo macula as relações, sejam entre pessoas ou entre povos; é preciso que se conceba outra escala de valores humanos onde o humano prevaleça; esse não é um ideal utópico, mas uma necessidade maior do nosso presente, onde a natureza se esgota por conta da agressão do capital, onde os homens se matam em guerras patrocinadas pelos interesses do capital, onde a beleza se esvai ou se silencia, calada pela brutalidade do capital.
Mas não dá para aceitar esse cinismo de tempos de guerra; massacre é massacre, morte é morte, sangue é sangue, destruição é destruição: não existe morte relativa, não existe meio sangue, não existe meio massacre - as palavras designam aquilo que as coisas são; só a retórica do cinismo tenta esconder e acobertar a natureza criminosa da guerra.
Mas não conseguirá.
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