16 novembro 2007

Os Mortos, Os Vivos

Vi pedras escritas com sangue
nas letras da memória
sangue misturado à argamassa do mundo
sangue encharcando
o trigo sobre a terra
faço poemas sem sangue
não há sangue no sol
só os mortos têm sangue
a escorrer pelas mãos
os vivos bebem leite
das galáxias
meu lado direito é avesso
meu lado esquerdo, revolução
o poema evocará os mortos
de todas as catacumbas
lutaremos em armas
contra o peso de Samsara
companheiros
as baionetas mais fecundas
nasceram das vozes dos pássaros
que repetiam mantras
contra a opressão do cosmo
faço palavra minha espada a língua
faço fuzil trincheira meu coração
piso em marcha afiada
falsas flores e o plástico
dos corações
cuspo em vermelho sobre catedrais, bancos, hospitais
enveneno as águas dos jornais
aos vampiros degolo com punhais
nas terras perdidas da América
Ó América inteira
desenterro teus ossos de poemas
cal a fecundar sonhos
ressuscito tuas mulheres de milho
as cinturas cobertas de sinais indecifráveis
são nossos olhos quedas d'água nas fronteiras
Aconcáguas, Cenotes
é o sexo da América
um transe no tempo
a eternidade revirando seus baús
guarás, lhamas passeiam em minhas veias
há muito tempo morri para o presente
sonho do passado a cauda que o futuro morderá
sonho a matéria de uma terra nova
sempre velha
América
terra de sonho, amor.

02 novembro 2007

Miséria e Revolução

O Cenário: estou saindo da livraria Loyola, no centro da cidade; ao lado, há um restaurante, um self service típico desses tempos de globalização; o restaurante está fechado, em frente a entrada, estão os despojos, o lixo, aquilo que o restaurante rejeita - restos de comida, tanta cozida quanto crua -, refugo alimentar dos trabalhadores que passaram por ali, sobras de carne não utilizada por tratar-se de pedaços não nobres - pele de frango, pescoço -, enfim, tudo aquilo que não foi aproveitado e que agora é vomitado pelas portas do restaurante para as ruas da cidade.
A Cena: frente aos sacos de lixo, três homens, de roupas sujas e rasgadas, debruçam-se em busca de algo: fixo bem o meu olhar, com certa discreção, para ver o que eles procuram, o que eles buscam; o que está à minha frente, tira do saco de lixo restos de carne crua, pela cor parecem ser restos de frango - pele e outras partes não aproveitadas -, ele recolhe com avidez os pedaços e põe em outro saco. Os outros repetem os mesmos gestos, com menor ou maior avidez, mas com um desespero contido, uma força que os mobiliza a atacarem os sacos.

Sei qual é essa força, sei qual é o motor do desespero - essa força é a fome, esse motor são os estômagos vazios, loucos para ingerirem qualquer coisa que alivie a carga vazia da fome.
Ainda que esse quadro se repita todos os dias pelos quadrantes da cidade, ainda que a cena tenha virado rotina e passe desapercebida aos olhos dos milhares que cruzam a cidade, mesmo assim não consigo deixar de me espantar e me indignar frente a essa cena que tem um sabor de inferno, que parece um trecho de um pesadelo narrado por uma pena goyesca, ou então um poema sombrio escrito por alguém que nunca viu o sol.
A miséria, assunto debatido nas universidades, discutido nos ministérios, planejado nas corporações, a miséria se tornou corriqueira, presente no cotidiano, e nós nos tornamos totalmente indiferentes a esses seres que se debatem pela pura sobrevivência.
Nós, bem ou mal, vivemos; eles sobrevivem, ou melhor, se esforçam para sobreviver, para, no mínimo, manterem vivos os seus corpos, essas máquinas fabulosas de vida. Não falo que eles têm esperanças, porque a esperança é um luxo daqueles que pelo menos têm com que se alimentarem. Os outros, os outros somente seguem.
É característico dessa civilização de início de século a frieza frente a dor alheia, a idéia mesma de que a miséria e a fome fazem parte da civilização - pelo menos esse é o discurso dos teóricos do neoliberalismo, das cabeças pensantes do capitalismo, que acham que a desigualdade social faz parte da dinâmica social e que assim terá de ser: aqueles que são abençoados pela riqueza - poucos, como os dedos de uma mão -, e os outros, aqueles que se debatem para no mínimo existirem - muitos, como grãos de pólen espalhados aos ventos.
Essa idéia é de uma falsidade e de um cinismo que não conseguimos medir. Porque a verdade é que a história nos prova que em outros momentos e outras civilizações, a fome não foi um dado permanente nem a desigualdade dava suporte a que milhares ficassem expostos a tão alto grau de miséria. O capitalismo sempre quer nos provar sua necessidade histórica, sempre e sempre nos mostrar que não há outra maneira de socialização, a não ser esse abismo, essa proximidade entre riqueza e miséria, esses laços entre a abundância e a escassez.
De minha parte, não acredito que a miséria seja um mal necessário, a pergunta que me faço é como conseguiremos acabar com ela.
Porque não vejo nenhuma classe a atuar, no momento, como sujeito histórico, não vejo nenhuma classe tentando transformar a história.
Podem dizer que as utopias são quimeras históricas; acredito que as utopias são o fermento do sonho que nos impulsiona a lutar por um mundo que seja humano, por uma história que aconteça - Marx dizia que ainda estávamos na pré-história, Nietzsche dizia que a história ainda não havia começado -, porque a história é o tempo ordenado pelo homem, a história é o acontecimento dirigido, então ainda não entramos no terreno da história.
Acredito que a miséria tenha um potencial revolucionário; Benjamin achava que a revolução deveria redimir não só aqueles oprimidos do presente, mas redimir também os mortos do passado, aqueles que foram submetidos à miséria antes de nós, aqueles que sucumbiram à opressão, lutando ou não contra ela.
Porque sucumbir não é uma questão de fraqueza, a queda não é uma questão moral, a queda às vezes é o último recurso da existência: caímos para continuarmos existindo, insistir na luta seria apostar na morte, seja ela involuntária ou não.
Isso me remete a outra cena:

O Cenário: a praça Clóvis Beviláqua, próximo à Av. Rangel Pestana.
A Cena: uma mulher, vestida com roupas maltrapilhas e sujas, sentada num banco, discute e agride...a si mesma. Ela se recrimina, ela se xinga; seus olhos não olham para fora, ela olha para ela mesma, ela não vê o mundo ao redor, ela nem vê a si mesma, ela só vê seus sonhos desfeitos, sua vida em ruínas, suas frustrações, sua fome, ela só vê a roupa que lhe falta, o ar poluído que ela respira, as violências que sofreu; ela xinga a si mesma, de nomes que para mim são sempre cristãos - toda obscenidade é cristã, já disse em outro lugar -, ela desenha no ar arabescos sombrios marcados pela loucura, marcados pela queda, marcados pelo medo.
Talvez seja uma deusa, porque sua voz ecoa dentro de mim, ainda ouço agora quando em frente ao computador digito esse texto meio barroco sobre a miséria; sua voz vem de um hades humano, dessa terra em que vivemos onde sucumbir é um verbo sempre presente e onde a miséria se tornou somente um detalhe da paisagem.

Então, como não falar em revolução ? como não insistir no potencial humano de transformar a realidade, como não insistir na ação humana que faz com que consigamos determinar o rumo dos acontecimentos ? Porque não é possível achar que esse estado das coisas seja o normal; não é possível achar que a miséria e a fome façam parte da existência humana como um mal necessário, porque isso deforma a nossa humanidade.
Mas qual revolução é possível ? Qual revolução se pode fazer ? O discurso da globalização tem um potencial extremamente perigoso, uma face asséptica e cínica, que tenta uniformizar as sociedades em torno das desigualdades e de um discurso tecnológico que tem um tremendo potencial alienante.
Alienação do sujeito não só enquanto sujeito social, alienação do sujeito também quanto à sua própria interioridade, esvaziamento do indivíduo, que não consegue mais se reconhecer nem como alguém capaz de sonhar, nem que sejam os sonhos mais triviais de uma vida cômoda e burguesa - as pessoas são levadas pelo movimento incessante das engrenagens sociais, pela roda mais do que viva, trituradora de homens, destruidora de humanos, aniquiladora da humanidade.
Mas, enquanto a miséria espalha seus tentáculos e a opressão social aumenta cada vez mais, ainda há os que insistem que a vida só será plenamente humana quando todos viverem em plenitude, sim a plenitude é um direito humano, a plenitude é a face que torna nossas incertezas, nossa incompletude mais bela, nosso rosto mais suave, cheio de flores que alguns chamam de esperança.
Acredito na revolução, ouço as vozes da mulheres loucas e sinto a fome dos mendigos, como ouço as vozes dos pássaros no amanhecer e sinto a fome do sol de alguma luz além da sua; ouço também os gritos dos torturados e o sangue dos que morreram em busca da luz, como vejo o amor no rosto das mulheres, e ouço o amor no coração da menina de olhos bicolores.
A via humana é grandiosa demais, mesmo que pequena e frágil. Redimi-la da fome e da dor, é nossa tarefa mais urgente, é nossa necessidade de humanizar a história.
Então, hasta la revolucion, companheiros.

14 outubro 2007

Asas Que Se Abrem - Poema

Asas Que Se Abrem

Minha voz é rouca, mancha submersa

espelho dos meus olhos

onde passam sombras, desesperos

dos mortos-vivos sobre a terra

loucos da fome, insânia da miséria

deuses vestidos de andrajos

loucos da dor, da indiferença

poetas de um texto a escrever

ah, valha mais a loucura que o fausto da usura

mais as palavras que machucam

as flores do dia

que os crepúsculos mortos dos edifícios

onde se compra a vida, se planeja a morte

milhares de almas acorrentadas pela fome

um dia gritarão no meio dos abismos

ventos marcharão contra as portas das cidades

cegos, loucos, também são deuses

o que tu vês, Tirésias das esquinas

além do que a morte

escancara em nossas retinas

o que tu ouves além

dos gritos dos fetos jogados no lixo

dos loucos que discutem pelas praças

com moscas e mendigos

diz, ó Dionísio

que piratas tu transformarás em pedra

que hera tu trarás para os muros da cidade

que febre cobrirá o pântano dos corações apodrecidos

pelo gelo da ganância

que o sexo dos homens enlouqueça

e as prostitutas ganhem asas

vejo um pão amassado

por prensas de papel-moeda

vejo cédulas onde corre sangue

e sangue cheio de cifrões

ó Moira que paira sobre deuses e abismos

estende tuas asas

sobre os mortos de papel

pesai os ossos

dessa fábrica do medo

minhas letras são tintas de angústia

ouvi o eco dos deuses

as paredes gritavam

quem redimirá os mortos, quem

libertará o gênio da terra, quem

derramará a água do futuro

deuses, sou só um poeta

um bicho cósmico uivando no espaço

não me peçam para redimir o mundo

flutuo sobre pontes, entre palavras

procuro o amor absoluto

tenho os pés feridos, inchados

meu calcanhar é o coração

não me peçam uma canção pelos mortos

não me peçam sementes, estradas, girassóis

tenho ombros onde esferas se derramam

germinando tempos

tenho olhos que enxergam cosmos

no coração de uma menina

ó vozes em tibetano antigo

vozes em dialeto de cristal

os ossos gritam sob a terra

vozes de escravos, vozes de índios

sangue misturado ao milho

carne de Mani

não posso redimir o tempo

não posso deter

a marcha dos elementos

eu que achei o amor

em forma de nereida

eu, que naveguei os mares do inferno e as águas da esperança

sou somente um gesto

asas que se abrem mais que as horas

liberdade que flutua, dente de leão

não me peçam a redenção

sou poeta

meu coração tem todos os gritos

não posso redimir o mundo

estou

só.


24 setembro 2007

A Burocracia Sindical

Se acrescentasse mais um r à segunda palavra do título acima nem por isso estaria errado, pois a verdade é que o movimento sindical está a morrer de asfixia, sufocado pelos tentáculos da burocracia que desde um longo tempo aprisiona o movimento.
As direções que atualmente conduzem o movimento estão, na sua maior parte, desde meados dos anos 80 ou 90 nas direções dos sindicatos, sem possibilitar o surgimento de novas lideranças e/ou novas expressões que tragam a tônica real das massas para os sindicatos.
Porque o movimento sindical é um movimento de massas, das massas trabalhadoras; ele perde o sentido se deixa de expressar, em sua essência e em sua organização, essa dinâmica interna da classe trabalhadora, que gera em seu seio as expressões individuais capazes de pensar alternativas diferentes às contradições do capitalismo.
O discurso que escutamos hoje das direções que estão à frente do movimento se assemelha, e muito, ao discurso das próprias empresas e não ao discurso dos trabalhadores: a primeira impressão que dá é que esse discurso se ampara num cientificismo que justifica suas mudanças amparado em dados estatísticos, em teorias científicas e econômicas que têm a pretensão da verdade.
Mas de fato esse discurso só expressa que as direções não conseguem mais manter o distanciamento necessário para pensar as proposições das classes trabalhadoras, porque na sua maior parte já foram cooptados pela essência da própria burocracia - que precisa da estabilidade e do imobilismo para garantir a posição dos dirigentes -, ou foram cooptados pelo próprio capital, em outras palavras, foram tragados pela lógica cruel da história e agora se repetem como farsa.
A verdade é que mesmo a ciência é uma construção ideológica, e os dados econômicos com que às vezes os sindicatos brandem aos quatro ventos justificando suas estratégias, também eles são construções ideológicas que podem e são manipulados.
É como na campanha salarial dos bancários, onde uma das propostas apresentadas defende a idéia de se discutir remuneração variável, um item que com certeza interessa mais aos bancos que aos trabalhadores, incorporando ao discurso da classe trabalhadora os interesses patronais; ou quando um ou outro dirigente diz ser inviável discutir a idéia de um novo PCS ou a conquista da isonomia nos bancos públicos, sem entender que a posição a ser assumida por um dirigente sindical é a de defender a classe trabalhadora e não os interesses da empresa.
Não existe relativismo moral na luta de classes, ou você está de um lado ou você está de outro, não há meio termo; se as direções sindicais começam a expressar esse relativismo moral, de que seus discursos soem tão ambíguos que não conseguimos distinguir de que lado eles estão, é um sinal claro que essas direções estão ultrapassadas e precisam ser substituídas urgentemente.
Não pode haver relativismo moral no movimento sindical, volto a insistir: é comum hoje em dia vermos ex-dirigentes sindicais trabalhando em estatais ou empresas públicas, assumindo posturas antitéticas com suas posições anteriores, quando defendiam com unhas e dentes a classe trabalhadora da qual agora eles esquecem e muitas vezes perseguem.
Se os trabalhadores não assumirem uma postura crítica em relação aos sindicatos e centrais sindicais, se os trabalhadores não se envolverem com o movimento para criarem novas estruturas e novas propostas que apontem uma saída para o labirinto em que estamos nos metendo, nós teremos um futuro sombrio, porque o fato concreto é que os capitalistas continuam unidos em torno do ideal do enriquecimento a qualquer preço, à custa dos direitos dos trabalhadores, da natureza e da própria vida.
Então, é preciso vida nova para os trabalhadores: mais democracia, novos valores e novas idéias para nortearem o movimento e nos ajudar a construir alternativas ao abismo capitalista.

08 setembro 2007

Metas


Enquanto a ONU fixou as metas do milênio, que dizem respeito a questões sócio ambientais, creio que precisamos fixar as metas da psique, um roteiro de salvaguarda psicológica contra a mal disfarçada massificação e entropia de tudo o que é psíquico e individual.
As metas do milênio, prontamente, se colocam como tentativa de solução para uma série de problemas, como o analfabetismo, a fome, a miséria, etc; não discutirei aqui se essas metas de fato podem atingir o cerne dos problemas ou se se trata de mais uma mis-en-cene, cortina de fumaça a ocultar a gênese e o epicentro do terremoto: que há uma insolúvel contradição nas sociedades e economias atuais. O problema que me coloco é o de que, na medida em que cresce a dinâmica estúpida da massificação e da concentração urbana nas grandes metrópoles, cada vez mais haja menos oportunidade de desenvolverem-se indivíduos, que cada vez menos as pessoas tenham a oportunidade de pensar em si mesmas como pessoas, e não como peças de uma grande engrenagem.
Relega-se a vida psíquica, ou vida interior, a um epifenômeno sem importância, e quando porventura se fala em fenômeno psíquico é para se falar na consciência, quando se discute uma ou outra moral. A vida psíquica é muito complexa para ser relegada como fenômeno marginal e muito vasta para ser vista somente pelo prisma da consciência. Aplica-se em relação a vida psíquica o mesmo critério utilitarista que temos aplicado em relação a toda a vida, de várias partes subordinadas a um todo - sendo que esse todo é uma esfera vazia e sem horizontes - o lucro.
A bem da verdade, a vida psíquica - ou espiritual - é tão ampla quanto qualquer fenômeno da natureza - com a mesma carga de complexidade, acrescida das nossas especifidades humanas, e suas expressão é dinâmica. O instinto, o inconsciente, a consciência, são uns tantos fenômenos meio a muitos outros que perfazem nossa verdadeira vida interior. A educação, que seria o instrumento mais adequado para projetar futuras gerações de indivíduos, infelizmente enfatiza nossas condutas gregárias, pouco dando atenção às predisposições, aos intercâmbios e turbulências da própria psique.
É preciso que fique bem claro que o universo do espírito não pode ser medido por padrões utilitários, morais ou mesmo financeiros. A parca e idiota visão utilitária não alcança as dimensões secretas e sagradas da vida, e essa visão é uma parcela mínima da história da humanidade. Não podemos medir o espírito com uma balança de papel-moeda.
Não há nenhuma preocupação, por parte dos governos, com as conseqüências psicológicas da vida social atual nem com as conseqüências sociais da vida psíquica atual. Comumente, hoje se vive como máquina, mesmo o lazer é só descanso programado: ainda não somos moto-contínuo. Pouco se exerce a autonomia interior, pouco se enfatiza as qualidades interiores do distanciamento e da solidão - porque vão contra tudo o que gregário; mas nenhuma grande obra humana surgiu como conseqüência do burburinho: as grandes obras são produtos de uma extrema concentração em si mesmo ou na natureza, e essa extrema concentração exige solidão.
Talvez seja esperar demais que os políticos incluam, entre suas proposições, uma preocupação com a vida interior das pessoas: ora, se a própria medicina voltou ao mais tosco materialismo psíquico, com sua malfadada concentração na bioquímica e na fisiologia, o que dizer então dos políticos, acostumados a moverem-se em esferas bem mais mesquinhas e menos sérias ?
É um dado real que o homem adoece psiquicamente, e ele adoece porque existe psiquicamente. Mas perceber a si mesmo, olhar para si mesmo e notar-se como ente singular, diferente dos demais, é fruto da educação e da introspecção, do olhar sobre si mesmo, coisa que não se faz vivendo-se na estúpida mecanicidade em que se vive.
Se os governos, corporações, empresas, não dão importância ao fato psíquico, cabe a nós, que conhecemos a importância da vida espiritual do homem, fixarmos nossas metas, coletivas e individuais, como compromissos e como roteiros orientadores. Elas são:
1- Não posso me esquecer que sou um ente individual e é uma das razões da vida descobrir o porque de minha singularidade.
2-Uma cultura do indivíduo não se opõe a realizações coletivas, desde que elas representem significativas aquisições de humanidade. Então: sempre colaborarei com realizações coletivas, desde que...
3-Sempre manterei minha necessária introspecção, como maneira de olhar para dentro de si mesmo.
4-Nunca se deixar levar pela intensa massificação, nunca se perder em meio a massa atordoada.
5-É necessário solidão para vivenciar o espírito.
6-Nunca relegar a segundo plano as necessidades psíquicas: elas são tão importantes quanto as necessidades físicas.
7- Adquirir cada vez mais cultura para aumentar as possibilidades de compreensão: a cultura escolar ( do colégio às universidades ), é tosca e incipiente; a cultura de massas é reducionista e estupidificante: é preciso criar o próprio paideuma.
9- Nunca subordinar a vida do espírito a qualquer evento externo, a não ser que o evento externo corresponda a alguma necessidade interior.
10- É preciso encontrar o ritmo das circunstâncias e fazê-lo tocar a nosso favor.
Vê-se que nossas metas são quase não metas, são nichos de orientação em meio à paisagem atribulada. Porque o espírito e as coisas do espírito são como a natureza, sua medida é a de milênios, e ainda que o eu não o possa abarcar, é isso que importa, um horizonte oculto mas real.
Quiçá no futuro faça parte do planejamento humano as necessidades psíquicas, tendo por fim a sempre crescente e maior humanização.

01 setembro 2007

Poema do AntiCapitalismo Visceral

Quero preservar meu sangue vermelho
das maquinações verdes dos banqueiros
quero salvar minha pele
do ócio gorduroso
do dinheiro

quero lavar meus olhos, tirar
o véu nefasto da usura
afastar de minha porta

o cancro terminal
das bolsas de valores
explodir em dinamites finas
a pura idolatria
dos servos de Mamon
queimar, com a virulência da palavra
a cal amarga
do dinheiro
vomitar em raios de luz
a servidão voluntária
ao trono financeiro
audaciosamente desprezar
o tilintar vazio
do ouro
rasgar tratados
enforcar
os deuses santos do capitalismo

quero bem mais
que horizontes subterrâneos

sim
à alegria vertical do sol
ao coração secreto do mundo
aos olhos meigos do albatroz
aos espaços
ao silêncio
ao não de uma noite de deuses

Somos todos deuses
no umbral do inaudito
somos todos puro devir

não nos seja mais que a vida

seguir.

O Sonho das Elites

A declaração infeliz do sr. Paulo Zutollo- presidente da Phillips do Brasil: “Não se pode pensar que o país é um Piauí, no sentido de que tanto faz quanto tanto fez. Se o Piauí deixar de existir ninguém vai ficar chateado” revela aquilo que é o sonho das elites brasileiras - o sonho de um país uniforme,com cara de Estados Unidos, homogeneizado pelo poder do dinheiro, livre daquilo que eles, da elite,no fundo consideram uma mácula: a heterogeneidade do povo brasileiro, as tradições e as diferenças que tornam efetivamente este país no que ele é: um permanente laboratório de criatividade e vida.Pessoas como essa,que nem merecem ser lembradas,pensam que o país é só o sudeste e o sul, como se qualquer lugar acima de Minas Gerais e qualquer sotaque além do mineiro fosse uma ofensa aos olhos e ouvidos delicados da burguesia.A verdade é que essa burguesia, que come caviar e se diverte jogando ovos podres na população pobre- como fez o outro pária filho da burguesia vulgo Boninho – ou espancando trabalhadoras ao amanhecer, essa burguesia cresceu sobre o sangue e suor de negros e pobres, nordestinos ou não; enriqueceu a custa de facilidades favorecidas pelos diversos governos, explorando mão de obra barata, pouco se preocupando com o destino do País, pouco se responsabilizando pelas conseqüências ambientais ou sociais de suas atividades; mas essa mesma burguesia é incapaz de criar qualquer coisa, incapaz de produzir beleza, incapaz de produzir novos valores; infelizmente, a lógica sanguessuga do capitalismo também impera no domínio moral e na esfera dos valores; não é à toa que a burguesia assimilou,copiou valores da aristocracia decadente e não é à toa que a burguesia nacional macaqueia as elites de fora,porque são incapazes de criar qualquer coisa que seja nova.Essa burguesia não compreende a geléia geral brasileira, como diria o poeta piauiense Torquato Neto. O espelho em que ela se olha é uma miragem fragmentada apontada para o hemisfério norte. Mas a verdade é que é ao povo que devemos nossas maiores obras, nossa verve mais criativa, nosso estímulo ao que é grandioso; é ao povo, o inventa línguas, como disse, se não me falha a memória,o poeta russo Klebnikov, que somos tributários da matéria prima com que desenhamos esse país.
Exemplos não faltam: do milagre que é a obra Grande Sertão:Veredas à genialidade do Deus e o Diabo na Terra do Sol à música de Villa Lobos, que nunca se envergonhou de ter recebido das fontes populares a matéria prima para sua música.A burguesia nunca compreenderá o Piauí, o Ceará, aliás, o Nordeste ou o norte do país, nunca compreenderá nossa heterogeneidade étnica, nossa diversidade cultural; incapaz que é de criar, também é incapaz de entender as tradições,o solo onde o povo germina sua cultura e promove o húmus da cultura.
Então, sr. ZuTOLLO, qualquer parte desse país que venha a desaparecer fará falta,muita falta, não só pelo espaço geográfico que a tanto custo conquistamos ao longo da história, mas principalmente pelo povo que o habita; a burguesia sim pode desaparecer, assim como desaparecem os sonhos ruins e os monstros dos pesadelos: depois de sugarem nossa energia, fogem quando chega o sol, desaparecem sob a luz.
Que a história então amanheça.